sábado, 7 de novembro de 2009

Leia obituário do "New York Times" sobre Claude Lévi-Strauss

EDWARD ROTHSTEIN

do New York Times

Claude Lévi-Strauss, o antropólogo francês cujos estudos revolucionários sobre aquele que até então era visto como "homem primitivo" transformaram a compreensão ocidental da natureza da cultura, dos costumes e da civilização, morreu aos cem anos de idade.

Seu filho Laurent disse que Lévi-Strauss morreu de parada cardíaca no fim de semana em sua casa em Paris. Sua morte foi anunciada na terça-feira, no mesmo dia em que ele foi sepultado no vilarejo de Lignerolles, na região da Côte-d'Or, a sudeste de Paris, onde ele tinha uma casa de campo.

"Ele tinha expressado o desejo de ter um funeral discreto e sóbrio, com seus familiares, em sua casa de campo", disse seu filho. "Ele era apegado a este lugar; gostava de fazer caminhadas na floresta, e o cemitério onde foi enterrado fica ao lado dessa floresta."

Pensador marcante e de enorme influência, Lévi-Strauss, com seus estudos das mitologias de tribos primitivas, transformou a maneira como o século 20 passou a compreender a própria civilização. Ele argumentou que as mitologias tribais revelam sistemas lógicos de sutileza notável, exibindo qualidades mentais racionais tão sofisticadas quanto as das sociedades ocidentais.

Lévi-Strauss rejeitava a ideia de que as diferenças entre sociedades não fossem importantes, mas se concentrava nos aspectos comuns das tentativas da humanidade de entender o mundo. Ele se tornou o maior expoente do chamado estruturalismo, uma escola de pensamento segundo a qual "estruturas" universais seriam subjacentes a toda a atividade humana, dando forma a culturas e criações aparentemente díspares.

Seu trabalho exerceu influência profunda até mesmo sobre seus críticos, dos quais houve muitos. Não houve sucessor comparável a ele na França. E seus escritos --que misturam pedantismo e poesia e são repletos de justaposições ousadas, argumentos complexos e metáforas elaboradas-- se assemelham a muito pouco do que veio antes na antropologia.

"As pessoas se dão conta de que ele é um dos grandes heróis intelectuais do século 20", disse em novembro passado Philippe Descola, presidente do departamento de antropologia do Collège de France, em entrevista ao "New York Times" no centenário do nascimento de Lévi-Strauss. Lévi-Strauss era tão reverenciado que a ocasião foi comemorada em pelo menos 25 países.

Descendente de uma família judaica francesa artística e distinta, Lévi-Strauss era um intelectual francês emblemático, tão à vontade na esfera pública quanto no mundo acadêmico. Ele lecionou em universidades de Paris, Nova York e São Paulo e também trabalhou para as Nações Unidas e para o governo francês.

Seu legado é imponente. "Mitológicas", sua obra em quatro volumes sobre a estrutura da mitologia indígena nas Américas, procura fazer nada menos que uma interpretação do mundo da cultura e dos costumes, moldada pela análise de várias centenas de mitos de tribos e tradições pouco conhecidas. Os volumes --"O Cru e o Cozido", "Do Mel às Cinzas", "A Origem dos Modos à Mesa" e "O Homem Nu", publicados entre 1964 e 1971-- desafiam o leitor com seu entremear complexo de temas e detalhes.

Na análise que fazia dos mitos e da cultura, Lévi-Strauss podia contrastar imagens de macacos e onças; analisar as diferenças de significado entre alimentos assados e fervidos em água (os canibais, ele sugeriu, tendiam a ferver seus amigos e assar seus inimigos) e traçar ligações entre histórias mitológicas esdrúxulas e complexas leis de casamento e parentesco.

Muitos de seus livros incluem diagramas que se assemelham a mapas de geometria interestelar, fórmulas que evocam técnicas matemáticas e fotos em preto e branco de rostos escarificados e rituais exóticos, feitas por ele durante seus trabalhos de campo.

"O Pensamento Selvagem"

Suas interpretações de mitos norte e sul-americanos foram fundamentais para transformar a visão ocidental das chamadas sociedades primitivas. Lévi-Strauss começou a desafiar o pensamento convencional a respeito destas pouco depois de iniciar suas pesquisas antropológicas, na década de 1930 --uma experiência que se tornou a base de um livro aclamado lançado em 1955, "Tristes Trópicos", uma espécie de meditação antropológica baseada em suas viagens no Brasil e em outras regiões.

A visão comumente aceita era de que as sociedades primitivas eram intelectualmente pouco imaginativas e temperamentalmente irracionais, baseando suas abordagens à vida e à religião na busca pela satisfação de necessidades urgentes de alimento, roupa e abrigo.

Lévi-Strauss resgatou os objetos de seus estudos dessa visão limitada. Começando com as tribos cadiuéu e bororo de Mato Grosso, onde ele fez seus primeiros e fundamentais trabalhos de campo, Lévi-Strauss identificou entre eles uma busca obstinada não apenas por satisfazer suas necessidades materiais, mas também por compreender origens; uma lógica sofisticada que regia até mesmo os mitos mais bizarros, e um senso implícito de ordem e desígnio, mesmo entre tribos que praticavam a guerra de maneira implacável.

Seu trabalho elevou o status da "mente selvagem", expressão que se tornaria o título inglês ("The Savage Mind") de uma de suas obras mais contundentes, "O Pensamento Selvagem" (1962).

"A sede de conhecimento objetivo", escreveu, "é um dos aspectos mais comumente ignorados do pensamento das pessoas que chamamos de 'primitivas'."

O mundo das tribos primitivas estava desaparecendo rapidamente. Entre 1900 e 1950, mais de 90 tribos e 15 línguas tinham deixado de existir, apenas no Brasil. Esse era outro dos temas recorrentes de Lévi-Strauss. Ele receava o crescimento de uma "civilização massificada", de uma "monocultura" moderna. Às vezes expressava uma repulsa irritada pelo Ocidente e "sua própria imundície, atirada no rosto da humanidade".

Nessa aparente exaltação da mente selvagem e denigrescimento da modernidade ocidental, Lévi-Strauss escrevia dentro da tradição do romantismo francês, inspirado pelo filósofo setecentista Jean-Jacques Rousseau, a quem reverenciava. Foi uma visão que ajudou a moldar sua reputação pública na era do romantismo contracultural dos anos 1960 e 1970.

Mas esse romantismo simplificado, além do relativismo cultural que ganhou forma nas décadas seguintes, também era uma distorção de suas ideias. Para Lévi-Strauss, o selvagem não é intrisecamente nobre ou de qualquer maneira "mais próximo da natureza". Lévi-Strauss se mostrou devastador, por exemplo, em suas descrições dos cadiuéus, que retratou como uma tribo que se rebelava contra a natureza --e, portanto, estava condenada-- a tal ponto que evitava a procriação, optando por "reproduzir-se" por meio do sequestro de crianças de tribos inimigas.

Suas descrições de tribos indígenas das Américas do Norte e do Sul guardam pouca relação com os clichês sentimentais e bucólicos que se tornaram comuns. Lévi-Strauss também traçava distinções nítidas entre o primitivo e o moderno, focando no desenvolvimento da escrita e da consciência histórica.

Foi uma consciência da história, a seu ver, que teria permitido o desenvolvimento da ciência e a evolução e expansão do Ocidente. Mas ele temia pelo destino do Ocidente, que, segundo escreveu no "New York Review of Books", estava "se permitindo esquecer ou destruir seu próprio legado". Ele também sugeriu que, com a perda da potência do mito no Ocidente moderno, a música teria assumido a função do mito. A música, argumentou, com seu poder narrativo primal, possui a capacidade de sugerir as forças e ideias conflitantes que estão nos fundamentos da sociedade.

Mas Lévi-Strauss rejeitou a ideia de Rousseau de que os problemas da humanidade decorrem das distorções humanas da natureza. Na visão dele, não existe alternativa a essas distorções. Cada sociedade precisa se criar a partir da matéria-prima da natureza, ele pensava, tendo a lei e a razão como suas ferramentas essenciais. Essa aplicação da razão, ele argumentava, cria estruturas universais que são encontradas em todas as culturas e todos os tempos.

Lévi-Strauss se tornou conhecido como estruturalista devido a sua convicção de que existe uma unidade estrutural subjacente a toda a criação humana de mitos, e ele demonstrou como esses motivos universais se expressam nas sociedades, até mesmo no desenho espacial de uma aldeia.

Para Lévi-Strauss, a mitologia de todas as culturas é erguida em torno de oposições: quente e frio, cru e cozido, animal e humano. E é por meio desses conceitos opostos, "binários", disse ele, que a humanidade interpreta o mundo.

Era tudo muito diferente das questões que até então preocupavam a maioria dos antropólogos. A antropologia até então havia tradicionalmente buscado trazer à tona as diferenças entre culturas, e não descobrir suas estruturas universais. Ela se preocupara não com ideias abstratas, mas com as particularidades de rituais e costumes, com sua coleta e catalogação.

A abordagem "estrutural" de Lévi-Strauss, buscando elementos universais da mente humana, chocou-se com aquela visão da antropologia. Lévi-Strauss não procurou determinar as diversas finalidades das práticas e dos rituais de uma sociedade. Jamais se interessou pelo tipo de trabalho de campo empreendido por antropólogos de uma geração posterior, como Clifford Geertz, que observaram e analisaram sociedades como que de seu interior. (Ele iniciou "Tristes Trópicos" com a declaração "odeio viajar e odeio exploradores".)

Ideias que agitaram seu campo

Como ele escreveu em "O Cru e o Cozido" (1964), Lévi-Strauss considerou que tinha levado "a pesquisa etnográfica na direção da psicologia, da lógica e da filosofia".

Em palestras dadas pela rádio à Canadian Broadcasting Corporation em 1977 (publicadas como "Myth and Meaning", Mito e Significado), Lévi-Strauss demonstrou como poderia ser feita uma análise estrutural de um mito. Ele citou um relato segundo o qual no século 17, no Peru, quando fazia fria intenso, um sacerdote convocava todos os que tinham nascido pelos pés primeiro, que tivessem lábio leporino ou fossem gêmeos. Essas pessoas então eram acusadas de serem responsáveis pelo tempo frio e eram ordenadas a fazer penitência. Mas por que esses grupos? Por que gêmeos e pessoas com lábio leporino?

Lévi-Strauss citou uma série de mitos norte-americanos que associam gêmeos a forças naturais opostas: ameaça e esperança para o futuro, perigo e expectativa. Um mito, por exemplo, inclui uma lebre mágica, um coelho, cujo focinho é rachado em uma briga, resultando literalmente em um lábio leporino, o que sugere uma condição gêmea incipiente. Com suas injunções, o sacerdote peruano parecia ter consciência de associações entre desordem cósmica e o poder latente dos gêmeos.

As ideias de Lévi-Strauss abalaram o campo da antropologia. Mas seus críticos foram muitos. Eles o atacaram por ignorar a história e a geografia, empregando mitos de um lugar e tempo para ajudar a lançar luz sobre mitos de outro, sem demonstrar qualquer conexão ou influência direta.

Em uma influente análise crítica da obra de Lévi-Strauss escrita em 1970, o antropólogo da Universidade Cambridge Edmund Leach escreveu: "Mesmo hoje, apesar de seu prestígio imenso, os críticos entre seus colegas de profissão superam muito em número os discípulos".

O próprio Leach duvidava de que Lévi-Strauss, durante seus trabalhos de campo no Brasil, pudesse ter conversado com "qualquer um de seus informantes indígenas em sua língua nativa" ou permanecido por tempo suficiente para confirmar suas primeiras impressões. Alguns dos argumentos teóricos de Lévi-Strauss, incluindo suas explicações sobre os canibais e seus gostos, foram contestados por pesquisas empíricas.

Lévi-Strauss reconheceu que sua força estava nas interpretações que fez do que descobriu. Ele pensava que seus críticos não tinham dado crédito suficiente ao impacto cumulativo dessas especulações. "Por que não admiti-lo?", disse certa vez a um entrevistador, Didier Eribon, em "De Perto e de Longe". "Não levei muito tempo a descobrir que eu era um homem feito mais para os estudos que para o trabalho em campo."

Claude Lévi-Strauss nasceu em 28 de novembro de 1908, em Bruxelas, filho de Raymond Lévi-Strauss e de Emma Levy, que estavam vivendo na Bélgica na época. Ele cresceu na França, perto de Versalhes, onde seu avô era rabino e seu pai, pintor retratista. Seu bisavô Isaac Strauss foi um violonista em Estrasburgo que foi mencionado por Berlioz em suas memórias. Quando criança, Lévi-Strauss gostava de colecionar objetos de toda espécie e os justapor. "Eu tinha paixão por curiosidades exóticas", disse em "De Perto e de Longe". "Minhas pequenas economias iam todas parar em lojas de artigos de segunda mão." Um conjunto de antiguidades da coleção de sua família, ele contou, foi exposto no Museu de Cluny, em Paris; outros objetos da coleção foram roubados depois de a França ser dominada pelos nazistas, em 1940. Entre 1927 e 1932, Lévi-Strauss se graduou em direito e filosofia na Universidade de Paris, depois lecionou em um colégio de segundo grau local, o Liceu Janson de Sailly, onde seus colegas professores incluíram Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir. Mais tarde ele se tornou professor de sociologia na Universidade de São Paulo, de influência francesa.

Gosto pela aventura

Decidido a tornar-se antropólogo, ele começou a fazer viagens pelo interior do Brasil, acompanhado por Diana Dreyfus, com que se casou em 1932. "Eu procurava uma maneira de conciliar minha formação profissional com meu gosto pela aventura", disse ele em "De Perto e de Longe", acrescentando: "Senti que estava revivendo as aventuras dos primeiros exploradores do século 16".

Seu casamento com Dreyfus terminou em divórcio, assim como um casamento subsequente, em 1946, com Rose-Marie Ullmo, com quem teve seu filho Laurent. Em 1954 Lévi-Strauss se casou com Monique Roman, e também eles tiveram um filho, Matthieu. Além de Laurent, Lévi-Strauss deixa sua esposa, Matthieu e os dois filhos de Matthieu.

Lévi-Strauss deixou de lecionar em 1937 para dedicar-se a trabalhos de campo, retornando à França em 1939 para levar seus estudos adiante. Mas, na véspera da Segunda Guerra Mundial, foi convocado pelo Exército francês para atuar como contato com as tropas britânicas. Em "Tristes Trópicos", ele descreve sua "retirada desordenada" da Linha Maginot depois da invasão da França por Hitler, fugindo em caminhões de gado e dormindo em "currais de ovelhas".

Em 1941 Lévi-Strauss foi convidado para ser professor visitante na Nova Escola de Pesquisas Sociais, em Nova York, com ajuda da Fundação Rockefeller. Ele descreveu esse período como "o mais frutífero de minha vida". Passava tempo na sala de leitura da Biblioteca Pública de Nova York e tornou-se amigo do respeitado antropólogo americano, mas nascido na Alemanha, Franz Boas e do linguista (e estruturalista) nascido na Rússia Roman Jakobson.

Ele também passou a integrar um círculo de artistas e surrealistas que incluía Max Ernst, André Breton e Dolorès Vanetti, futura amante de Jean-Paul Sartre. Vanetti, disse Lévi-Strauss em "Conversations", compartilhava sua "paixão por objetos", e os dois faziam visitas regulares a uma loja de antiguidades de Manhattan que vendia artefatos do Noroeste Pacífico. Essas excursões deixaram Lévi-Strauss com "a impressão de que tudo o que há de essencial nos tesouros artísticos da humanidade podia ser encontrado em Nova York".

Após a guerra, Lévi-Strauss estava tão determinado a levar adiante seus estudos em Nova York que recebeu do governo francês o cargo de adido cultural, que exerceu até 1947. Retornando à França, recebeu um doutorado em letras da Universidade de Paris em 1948 e foi curador associado do Museu do Homem, em Paris, em 1948 e 1949. Seu primeiro grande livro, "As Estruturas Elementares do Parentesco", foi publicado em 1949. (Alguns anos mais tarde, o júri do Prêmio Goncourt, o mais famoso prêmio literário da França, disse que teria dado o prêmio a "Tristes Trópicos", seu híbrido de livro de memórias e relato de viagens antropológico, se tivesse sido ficção.)

Depois de a Fundação Rockefeller ter feito uma doação à École Pratique des Hautes Études, em Paris, para a criação de um departamento de estudos sociais e econômicos, Lévi-Strauss tornou-se o diretor de estudos da escola, cargo no qual permaneceu de 1950 a 1974.

Seguiram-se outros cargos. Entre 1953 e 1960, Lévi-Strauss foi secretário-geral do Conselho Internacional de Ciência Social da Unesco. Em 1959 ele foi nomeado professor do Collège de France. Foi eleito para a Academia Francesa em 1973. Em 1960 Lévi-Strauss já tinha fundado o "L'Homme", periódico que seguiu o modelo da "The American Anthropologist".

Nos anos 1980 o estruturalismo, conforme visualizado por Lévi-Strauss, deu lugar aos pensadores franceses que se tornaram conhecidos como pós-estruturalistas: escritores como Michel Foucault, Roland Barthes e Jacques Derrida. Eles rejeitavam a ideia das estruturas universais atemporais e argumentavam que história e experiência eram muito mais importantes que leis universais na formação da consciência humana.

"A sociedade francesa, e a parisiense em especial, é voraz", respondeu Lévi-Strauss. "A cada cinco anos, mais ou menos, sente a necessidade de encher sua boca com algo novo. Assim, cinco anos atrás era o estruturalismo, e agora é outra coisa. Praticamente não ouso mais usar a palavra 'estruturalista', tão gravemente ela foi deformada. Eu certamente não sou o pai do estruturalismo."

Mas é possível que a versão de estruturalismo proposta por Lévi-Strauss acabe sobrevivendo ao pós-estruturalismo, assim como Lévi-Strauss sobreviveu à maioria de seus expoentes. Sua obra monumental "Mitológicas" pode até assegurar seu legado, se não como explicador das mitologias, como seu criador.

O volume final de "Mitológicas" termina com a sugestão de que a lógica da mitologia é tão poderosa que os mitos quase têm uma vida independente dos povos que os contam. Na visão de Lévi-Strauss, os mitos falam através da humanidade, e, por sua vez, se tornam as ferramentas com as quais a humanidade se concilia com o maior mistério do mundo: a possibilidade de não ser, o fardo da mortalidade.

Colaborou Nadim Audi, de Paris

Tradução de Clara Allain

Este texto foi publicado originalmente no jornal "The New York Times"

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Percepções dos enfermeiros sobre a metodologia da assistência de Enfermagem

Enéas Rangel Teixeira*
Rosalda da Cruz Nogueira Paim**
Fátima Helena do Espírito Santo***


RESUMO: Este trabalho realiza uma discussão crítica da metodologia científica da assistência
de enfermagem diante da realidade do trabalho do enfermeiro. Trata-se de uma pesquisa qualiquantitativa.
Foram aplicados questionários em 84 enfermeiros e realizadas 26 entrevistas em
sujeitos lotados em hospitais de duas Universidades do Estado do Rio de Janeiro. Levantaramse
as seguintes categorias: conhecimento, metodologia e prática profissional, ensino e prática
da metodologia, importância do processo de enfermagem. Concluiu-se que as condições de
trabalho, a política institucional, a deficiência de pessoal e a hegemonia médica dificultam a
implantação do processo de enfermagem na prática. Existe uma dicotomia entre os conceitos
teóricos apreendidos na graduação e a prática profissional. O processo é considerado por uma
parcela significativa como fundamental para a prática profissional.
Palavras-chave: Enfermagem. Assistência. Metodologia.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Este trabalho resulta de nossas vivências na assistência e docência em enfermagem no campo
da metodologia da assistência de enfermagem. As inquietações e conflitos existentes entre a
prática e a teoria serviram como fatores motivadores para realizar esta pesquisa. O estudo,
em causa, teve como objetivo realizar uma discussão crítica da metodologia científica da
assistência de enfermagem em relação à prática do enfermeiro, procurando entender o pensar
e o fazer a respeito do processo de enfermagem. Realizamos comparações de depoimentos de
enfermeiros que trabalham em hospitais de duas universidades públicas: uma que adota a
metodologia científica e outra que não adota.
Dessa forma, destacamos os aspectos conceituais e críticos envolvidos com o processo de
enfermagem e sua função utilitária.
Trata-se de um trabalho que tem seus desdobramentos no ensino e na prática profissional
exigindo, assim, aprofundar os estudos nessa área no sentido de reconhecer a real situação da
prática do enfermeiro no que se refere a
metodologia da assistência.
A metodologia científica da assistência de
enfermagem, ou processo de enfermagem
surge num contexto histórico com ênfase em
nível acadêmico tornando as ações de
enfermagem em acordes como o método
científico. Tal método aplicado a enfermagem
* Doutor em Enfermagem. Professor do Departamento
de Enfermagem Médico-cirúrgica da Escola de
Enfermagem Aurora de Afonso Costa (EEAAC) UFF.
** Doutora em Enfermagem. Professora aposentada
da Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa
da UFF.
*** Doutora em Enfermagem Professora do Departamento
de Enfermagem Médico Cirúrgica da EEAAC
- UFF.
88 R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004.
visa sistematizar, organizar a prática,
qualificar a assistência e definir as atribuições
do enfermeiro.
As iniciativas em planejar cientificamente a
assistência de enfermagem no Brasil tiveram
início na década de 50 por influência Norte
Americana por meio das obras de Rogers e
Henderson (SANTOS, 1994, p. 40).
No ano de 1965, o Congresso Brasileiro de
Enfermagem, recomendou a utilização do
plano de enfermagem (PAIM, 1976). Isto
dentro por repercussão do cientificismo que
norteava a profissão, num contexto histórico
em que a enfermagem abria campo para a
produção científica.
Dentro deste contexto surgiram os teóricos
de enfermagem que visaram a construção de
um arcabouço metodológico que desse
suporte a planejamento da assistência de
enfermagem no Brasil. Dentre eles citamos o
marco conceitual de Horta, que na década de
70 elaborou a Teoria das Necessidades
Humanas Básicas e preconizou o processo de
enfermagem na prática profissional,
considerando como essência da enfermagem.
Nesse contexto PAIM (1976, p. 19) criou a
Teoria Sistêmica e Ecológica de Enfermagem;
um modelo de processo de enfermagem,
“Processo Cibernético” em 1974, objetivando
respaldar a assistência.
Outros modelos de processo de enfermagem
surgiram na literatura. Citamos Paim (1976)
e Queiroz (1988).
Dando legalidade ao processo de enfermagem,
surge a lei do exercício profissional (no 7.498/
1986) que prevê as atribuições do enfermeiro
ligada à metodologia da assistência de
enfermagem. Entretanto, o enfermeiro, mesmo
tendo respaldo legal para a execução da
metodologia da assistência, poucos efeitos
têm-se observado no cotidiano da prática.
Contudo, a falta de relação entre os conceitos
teóricos e a prática profissional cria uma
dissonância e gera conflitos na assistência de
enfermagem no que se refere ao uso da
metodologia que, ao ser aplicada, se torna de
modo fracionada e distorcida dos princípios
teóricos.
Sobre a formação do enfermeiro no que se
refere ao processo de enfermagem, existe uma
profunda dicotomia com o seu trabalho
prático. BUENO e outros (1987) ressaltam
que não há uma consonância entre o que é
aprendido e o que é vivenciado na prática de
enfermagem. Isto se aplica à utilização da
metodologia da assistência pois, geralmente,
os enfermeiros têm experiência com o
processo como estudante, mas não o mantém
na sua prática.
Ao refletirmos sobre as nossas ações como
profissionais da saúde deparamo-nos com
condições precárias de trabalho, de modo que
estas situações forçam o enfermeiro a exercer
funções burocráticas que o distanciam da
assistência propriamente dita. Determinadas
instituições de saúde no Brasil ainda
empregam pessoas pouco qualificadas e
enfermeiros como seus supervisores e,
certamente, isto reforça as contradições no
campo da enfermagem impedindo que a
assistência seja de qualidade.
Sobre a constituição desse saber na prática,
Almeida (1986) ressalta que o saber de
enfermagem não é legitimado nas instituições
e é indefinido na prática. Observa-se que os
enfermeiros dão suporte ao saber médico ao
mesmo tempo em que buscam status
científico de modo incipiente.
Dentro desta visão, Paim (1991) afirma que a
prática de enfermagem é compatível com o
paradigma biomédico que norteou o modelo
científico e a evolução da enfermagem até
nossos dias. A enfermagem no Brasil, embora
tenha surgido no contexto da saúde pública,
teve a sua evolução no âmbito da medicina
adotando, desde logo, o seu paradigma. Essa
situação atinge a enfermagem e não
corresponde aos interesses dos usuários e dos
trabalhadores na enfermagem.
R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004. 89
Considera-se que, para a enfermagem
alcançar o seu próprio saber, é preciso romper
o modelo biomédico e buscar seus caminhos,
o que implica em uma ruptura em nível
epistemiológico e político.
A partir dessas reflexões surgiram, como
norteadores de nosso problema, as seguintes
questões: O que os enfermeiros conhecem
sobre a metodologia científica da assistência
de enfermagem? Como os enfermeiros
consideram o aspecto utilitário da metodologia
em relação à prática profissional? De que
forma os enfermeiros vêem a relação entre o
ensino e a prática do processo de enfermagem?
Qual a importância da metodologia científica
da assistência de enfermagem na prática do
enfermeiro?
2 ASPECTOS
METODOLÓGICOS
Estudo descritivo e exploratório. A pesquisa é
quanti-qualitativa. O universo considerado se
restringiu aos hospitais de duas universidades
no estado do Rio de Janeiro. Inicialmente,
elaboramos um modelo de questionário que
foi submetido ao “pré-teste piloto”. Foram
aplicados 22 questionários nos enfermeiros e,
logo após, de posse dos resultados estabelecemos
o questionário definitivo. A coleta dos
dados quantitativos foi realizada no 2o semestre
de 1992 e de 1993. As entrevistas foram
feitas no 2o semestre de 1995.
Aplicamos 84 questionários em hospitais de
duas universidades públicas. Na primeira,
que convencionamos chamar de instituição
A, aplicamos 36 questionários num hospital
geral e 14 num hospital de pediatria e puericultura
vinculado à universidade. Procedemos
assim porque o hospital geral da instituição
A não tinha clínica pediátrica. Na outra
universidade, que denominamos instituição
B, aplicamos 34 questionários em um hospital
geral. Dos elementos submetidos aos
questionários, 89,3% deles eram do sexo
feminino e 10,7% do sexo masculino; a
maioria com mais de 2 anos de formado:
45,2% com habilitação, 42% com habilitação
e especialização e apenas 2,3% tem mestrado.
Para aprofundarmos a pesquisa realizamos
26 entrevistas semi-estruturadas nas
referidas instituições: 20 entrevistas foram
gravadas em fita magnética e transcritas e 6
foram registradas manualmente. A maior
parte dos enfermeiros tinha mais de 10 anos
de formado, possuindo especialização ou
residência em enfermagem. Em sua maioria
as pessoas escolhidas foram aquelas
diretamente envolvidas com a assistência de
enfermagem de modo que tinham experiências
suficientes para falarem sobre o assunto
em causa.
Os depoimentos foram colhidos de enfermeiros
assistenciais distribuídos nas enfermarias
de clínica médica, clínica cirúrgica e maternoinfantil.
O critério de aplicação obedeceu às
visitas aos plantões permitindo uma escolha
aleatória.
A codificação dos resultados quantitativos foi
aferido por freqüência (%). Os dados provenientes
das entrevistas e das questões
abertas dos questionários foram categorizados
pela semelhança dos conteúdos emitidos
e pela repetição das respostas.
Das categorias surgidas sobre a metodologia
científica da assistência de enfermagem,
evidenciam-se: conhecimento, metodologia e
prática profissional, importância do processo
de enfermagem as quais são analisadas a
seguir. As citações dos entrevistados se
encontram em recuo, para destaque.
90 R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004.
3 CONHECIMENTOS
SOBRE A
METODOLOGIA
CIENTÍFICA DA
ASSISTÊNCIA DE
ENFERMAGEM
Os conceitos referentes à metodologia da
assistência surgem como recursos para
instrumentalizar a prática profissional,
tornando-a científica e sistematizada. Esta
visão é compartilhada pelos protagonistas do
processo de enfermagem os quais sustentam
que o processo tem como objetivo favorecer
um corpo de conhecimento na enfermagem,
além de sistematizar e valorizar a prática
(HORTA, 1979). Essa colocação é uma
maneira de se introduzir uma racionalidade
no trabalho do enfermeiro, de modo a permitir
um acompanhamento do processo de trabalho.
Isto ficou bem evidente na pesquisa, na qual a
Metodologia é considerada como sinônimo de
planejamento, processo de enfermagem que
organiza a prática profissional. Assim, uma
enfermeira diz que:
Basicamente o processo de enfermagem
é: a identificação dos problemas, o
planejamento da assistência, a prescrição
de enfermagem e a execução dessa assistência.
Há uma nítida preocupação do enfermeiro em
ter um controle sobre o processo de trabalho
e em organizar o espaço hospitalar no que se
refere a assistência. Esta atribuição é
determinada historicamente ao enfermeiro e
ficou evidente no presente trabalho pelo
relato do seguinte depoente:
O enfermeiro no planejamento da
assistência é a figura primordial porque
ele sendo chefe de equipe ele seria como
coordenador de todo esse processo da
assistência de enfermagem.
Entretanto, na atual conjuntura existem
entraves na prática de enfermagem, impostos
pela política institucional que, ordinariamente,
contribuem para que os profissionais de
enfermagem não tenham uma consciência
crítica sobre o processo de trabalho nem,
tampouco, participem das decisões efetivas
dentro da instituição. Nesse sentido o
enfermeiro não consegue realizar um
planejamento efetivo da assistência.
Os referenciais teóricos buscados pelos
enfermeiros não provém do exercício
cotidiano das suas práticas, mas dos conceitos
assimilados na graduação ou na pósgraduação.
Tal achado nos leva a dizer que o
ensino da metodologia da assistência foi
enfatizado na graduação e que não houve uma
continuidade efetiva desse método na prática
de trabalho. Isto permite que o conhecimento
sobre a metodologia surja de modo vago e
elementar, com referências ao passado e ao
esquecimento. Apesar de ocorrer uma busca
referencial aos conceitos acadêmicos para
subsidiar a prática, paralelamente é reforçado
que os conceitos teóricos da graduação não
têm aderência prática, como ilustra o seguinte
enfermeiro:
Estudei o assunto quando estudante, mas
não é aplicada em nenhum lugar em que
trabalhei, mesmo aqui, no hospital
universitário, portanto esquecido.
Isso fica esclarecido quando grande parte dos
enfermeiros depoentes, Tabela 1, afirma que
possuem poucas informações sobre as teorias
de enfermagem, 48% na instituição A e 58,8%
na instituição B. Se realmente essas teorias
estivessem subsidiando a prática, os enfermeiros
pesquisados expressariam maiores
conhecimentos sobre elas. Entretanto, esses
conhecimentos são superficiais, internalizados
de forma confusa e embrionários.
Contudo, não houve um conhecimento nulo
sobre as teorias, o que é explicado pela aquisição
de saberes difundidos na graduação, pósgraduação
e eventos técnico-científicos. Isto é
ilustrado pelos seguintes depoimentos dos
entrevistados.
R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004. 91
– Conheço algumas, mas nunca consegui
entender muito bem, mas conheço a
teoria de Orem, a única que consegui
associar com a prática.
– Sobre as teorias de enfermagem não me
lembro muito bem porque a gente vê isso
lá na graduação [...] Não praticando e não
lendo sempre, a gente acaba esquecendo.
Quanto as teorias de enfermagem mais
citadas, pelos enfermeiros, as mais
freqüentes, foram a das Necessidades
Humanas Básicas de Wanda Horta e do
Autocuidado de Dorothea Orem. Estas teorias
tiveram maior difusão na formação e na
prática assistencial. A influência de Horta
provavelmente se deve ao seu trabalho
primordial na sistematização da assistência
de enfermagem no Brasil. Todavia, resta-nos
uma profunda reflexão sobre os efeitos dessas
teorias na prática de enfermagem. Assim,
necessitamos de melhores estudos para
verificar a utilidade das teorias de enfermagem
no ensino e na prática.
Há uma preocupação dos enfermeiros com os
efeitos práticos das teorias, de modo que não
existem motivações em comentar sobre elas.
Uma parte dos depoentes diz nada saber
sobre as teorias de enfermagem. Os enfermeiros
mais qualificados falam, exaustivamente,
das teorias de enfermagem, de modo
a citar um cabedal de teorias, que permanecem
mais em termos conceituais do que
numa efetiva ação prática. Isto indica que a
formação está tendo um direcionamento não
coerente com o saber da enfermagem diante
das reais condições do trabalho de enfermagem
no Brasil. Neste sentido Barros (1992,
p. 99) também ressalta que
os enfermeiros são preparados para o que
‘deveriam fazer’ e não o que efetivamente
fazem, isto tem conferido ao profissional
uma desqualificação técnica.
Apesar de os conceitos adquiridos na graduação
terem uma conotação idealista, sem aderência
real em determinadas situações, percebemos
que a prática por si mesmo, norteada pelo fazer
vem impregnado de utilitarismo e pragmatismo.
Essa visão expressa as condições de
trabalho de enfermagem na instituição hospitalar,
que estabelece as diretrizes para o
trabalho de enfermagem. Há uma dicotomia
entre o saber e o fazer. Por um lado encontrase
um saber idealista, sem relação com a prática
e, por outro, percebe-se a preocupação pragmática
e utilitária do enfermeiro.
O desconhecimento do enfermeiro sobre as
suas reais atribuições impede que ele utilize
seus recursos e adote ações não muito
confortáveis e isto dificulta a instrumentalização
e a consciência do real papel do
enfermeiro na prática.
– Hoje eu sinto falta desse conhecimento
da metodologia, eu me sinto estagnada.
Isto porque não sei desenvolver bem essa
parte, me desestimula. Então eu me sinto
como se estivesse com uma viseira na
minha frente.
Constatamos, também, uma preocupação do
enfermeiro em tratar a clientela de modo
Tabela 1: Conhecimento dos enfermeiros sobre as teorias de enfermagem, RJ, 1993.
Fonte: Os autores.
Conhecimento Instituição
A (%) B (%)
Possuem poucas informações sobre elas 24 (48 %) 20 (58,8 %)
Conhece algumas 24 (48 %) 9 (26,5 %)
Desconhece-as 0 (0 %) 0 (0 %)
Não respondeu 2 (4 %) 5 (14,7 %)
Total 50 (100 %) 34 (100 %)
92 R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004.
unitário e integral. Isto demonstra que o
cuidar requer um saber que dê conta dos
aspectos psicossociais do sujeito, que não são
explicados pelo modelo biomédico mecanicista
(PAIM, 1986, 1991). O que também
aponta o desejo do enfermeiro, mesmo que
timidamente, em superar o paradigma atual
que impede uma assistência integral humanitária
e social. Capra (1982) afirma que o
enfermeiro tem uma visão do cliente mais
intuitiva, integral e humanizada, mas que
ainda não é reconhecido pelo poder dominante
patriarcal. Essa reflexão é explicitada
pelo relato seguinte:
– Outra coisa seria essa abordagem, a
pessoa já ir preparado para atender o
paciente como um todo realmente, ela ver
o paciente físico, psiquico e emocional, e
a parte espiritual também. Então para que
ela possa dar uma assistência integral ao
paciente [...] Se você não ver o paciente
como um todo, fica difícil dar uma boa
assistência a ele.
4 METODOLOGIA
CIENTÍFICA DA
ASSISTÊNCIA E A
PRÁTICA
PROFISSIONAL
Percebe-se que os dados são significativos a
favor da viabilidade do processo na prática,
conforme indica a Tabela 2, onde 48% dos
enfermeiros depoentes da instituição A e
32,4% dos depoentes da instituição B a
consideram viável na prática. Uma posição
intermediário, ou talvez por indicar uma
adaptação da metodologia da assistência na
prática, é encontrada por 44% dos
entrevistados da instituição B e da instituição
A quando dizem que a metodologia é pouco
viável. Não se constata uma rejeição total à
metodologia da assistência, pois apenas 3%
dos depoentes da instituição A e 14,7% dos
depoentes da instituição B a consideram
inviável.
Entretanto, no hospital B a metodologia é
aplicada em alguns setores mas de modo
sumário: evolução e prescrição. Mesmo no
hospital A muitos enfermeiros falam de uma
adaptação do processo devido às condições
de trabalho, apesar de existir um plano padronizado
na instituição. Isto é demonstrado pela
seguinte citação:
Dentro do Hospital Universitário dá para
fazer alguma coisa, embora não seja
perfeito devido a falta de pessoal. Isto
dificulta um pouco o nível da assistência
e o plano de cuidados. Além do mais
aplicar a metodologia assistencial em
todos os pacientes fica difícil.
Nota-se uma tentativa em adaptar a metodologia,
quando se percebe que não é possível
aplicá-la de modo pleno, dada as condições
precárias de trabalho, tais como: equipe insuficiente
em número, má remuneração e
ações de enfermagem repetitivas e pouco
criativas, frutos das políticas institucionais e
devido às condições do Sistema de Saúde no
Brasil. Aspectos bastantes frisados nos
discursos dos enfermeiros, que geram insatisfação
no trabalho e forçam o enfermeiro
exercer funções estranhas a sua formação,
conforme os seguintes relatos:
O Sistema de Saúde está tão falido, e todo
mundo anda tão desanimado, que eu nem
sei se tenho coragem de sugerir alguma
coisa. Eu estou muito frustada com o
salário, com as condições de trabalho, que
Tabela 2: Opinião dos enfermeiros sobre a
viabilidade na prática da metodologia
da assistência de enfermagem,
RJ, 1993.
Opinião Instituição
A (%) B (%)
Viável 24 (48 %) 11 (32,4 %)
Pouco viável 22 (44 %) 15 (44,1 %)
Inviável 3 (6 %) 5 (14,7 %)
Não respondeu 1 (2 %) 3 (8,8 %)
Total 50 (100 %) 34 (100 %)
Fonte: Os autores.
R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004. 93
nem sei. Acho que todo mundo está
deprimido, se pudesse todo mundo
mudaria de profissão, eu inclusive.
Falta tempo, número reduzido de
funcionários, número insuficiente de
material, estresse total no serviço.
A instituição exige do enfermeiro o controle
de material e o gerenciamento do pessoal de
enfermagem. Porém, na maioria das vezes,
uma assistência direta a todos os pacientes
se torna impraticável, conforme foi apontado
pelos depoentes quando se falou da necessidade
de uma melhor proporção enfermeiro/
cliente para que a metodologia, que é ensinada
na graduação, possa ser aplicada de
modo satisfatório.
Existe uma forte idéia de que a real função
do enfermeiro está no cuidado direto, porém
ele mesmo se sente deslocado de sua função.
Todavia, na maioria das instituições de saúde
no Brasil, o enfermeiro exerce o cuidado
indireto, o que se explica pelo quantitativo de
enfermeiros no País. De acordo com Almeida
(1986, p. 72-73) a “marginalização” da
enfermeira foi intensificado nas últimas
décadas devido ao crescimento da indústria
hospitalar e à expansão técnico-científico da
medicina, de modo que houve maior emprego
de atendentes e a função do enfermeiro ficou
a reboque desse transformação. Assim, a
instituição exige que o enfermeiro faça
funcionar o trabalho de enfermagem, não
exigindo a execução dos cuidados por ele, mas
a função de supervisor da assistência.
Portanto, o cuidado indireto. O trabalho do
enfermeiro fica, então, restrito às funções
repetitivas, apesar dos esforços de certos
enfermeiros para implementar um plano de
assistência frente as outras exigências da
instituição. Assim ressalta um enfermeiro:
O enfermeiro não vai ter tempo nunca de
fazer um planejamento sem condições.
Mesmo se ele parar só para fazer o
planejamento, não vai ser realizado, pois
os auxiliares não vão ter tempo de
executar.
Muitas funções administrativas, no que se
refere à assistência, cabem ao enfermeiro
exercer, mas aquelas de caráter repetitivo,
pouco criativo e burocrática merecem ser
questionadas quando da sua importância
para profissão, pois não são funções reais da
assistência. É comum o enfermeiro exercer
atividades para apoiar a prática médica, que
é mantida e legitimada no Hospital Universitário,
centro da difusão do saber médico
hegemônico (LUZ, 1986, p. 40), uma realidade
da prática impeditiva de um trabalho
construtivo de um saber em enfermagem.
Infelizmente, o enfermeiro tem um monte
de funções, que eu acho que não deveria
ter. Isso acaba prejudicando a assistência
ao doente, muita burocracia, muita
responsabilidade sobre esse aspecto. É
impossível alguém ser burocrata e
assistencial ao mesmo tempo.
O relato acima aponta que o deslocamento de
funções ligadas à assistência, o cuidado direto
e indireto, as condições de trabalho, o ensino
da metodologia da assistência individualizada
e idealizada, contribuem para serem elementos
de conflitos, que levam a refletir sobre a
identidade profissional do enfermeiro na
sociedade brasileira. Entretanto, percebe-se
pelo discurso dos depoentes, que há um reconhecimento
do enfermeiro como coordenador
da assistência, o qual tem competência
técnica e científica para tal fim. Um depoente
ressalta que
o enfermeiro é fundamental, pois ele é o
planejador da assistência e do setor de
trabalho.
As condições de trabalho fazem com que as
atribuições do enfermeiro se distanciem das
condições ideais de enfermagem acadêmica,
gerando impasses nas ações de enfermagem.
Constata-se uma preocupação em ter uma
diretriz que instrumentalize a assistência. A
metodologia da assistência de enfermagem
tem funcionado como um instrumento, permanecendo
como um suporte que delimita,
94 R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004.
em nível acadêmico, a função do enfermeiro.
Isso é ilustrado quando se diz que o enfermeiro
se sente realmente exercendo o seu
papel ao utilizar ações produtoras de uma
identidade profissional.
Estou trabalhando num setor onde
procuramos desempenhar realmente o
papel do enfermeiro.
A falta de delimitação de papéis na equipe de
enfermagem gera “crises” que, numa profissão
estratificada, contribui para a alienação
(SILVA, 1989). É importante nesse contexto
repensar sobre as reais atividades do enfermeiro
para evitar a continuidade do exercício
profissional em atividades estranhas as reais
funções do enfermeiro (Lei no 7498/86).
O enfermeiro busca encontrar seu espaço,
porém muito lentamente devido as
limitações do sistema operacional e a falta
de conscientização do próprio enfermeiro.
Sobre os benefícios da atual lei do exercício
profissional no que se refere à metodologia da
assistência, os dados da Tabela 3 demonstram
que 42% dos depoentes da instituição A dizem
que foi de poucos benefícios e 38,2% dos
depoentes da instituição B dizem que foi de
quase nenhum benefício. Isto indica a pouca
difusão e valorização da execução da lei no trabalho
do enfermeiro. Apesar de a lei do exercício
delimitar as atribuições
dos integrantes da enfermagem,
além de respaldar a
metodologia da assistência,
não é ela por si mesma que
levará as mudanças necessárias
na prática profissional,
pois o caráter metodológico
e legal da assistência,
há de se propiciar as
reais condições de trabalho
de enfermagem do Brasil
(LORENZETTI, 1987).
Sobre as experiências com o
processo de enfermagem,
observamos dados significativos na Tabela 4,
onde 42% dos depoentes da instituição A
utilizam continuamente no seu setor de trabalho,
em contrapartida apenas 15% dos depoentes
da instituição B a utilizam continuamente.
Tais dados encontram explicação
tendo em vista que a primeira instituição
adota oficialmente a metodologia, enquanto
a segunda instituição não a tem formalizada.
Aspecto que ficou bem caracterizado nas
entrevistas, onde os enfermeiros da instituição
A parecem conhecer melhor suas atribuições
em relação à metodologia da assistência.
Um enfermeiro do hospital A (que adota a
metodologia) faz o seguinte relato:
Tabela 3: Opinião dos enfermeiros sobre os
benefícios na prática da lei do
exercício profissional que respalda
a metodologia da assistência,
RJ, 1993.
Benefícios na
prática
nstituição
A (%) B (%)
Muitos 9 (18 %) 7 (20,6 %)
Poucos 21 (42 %) 8 (23,6 %)
Quase nenhum 10 (20 %) 13 (38,2 %)
Não respondeu 10 (20 %) 6 (17,6 %)
Total 50 (100 %) 34 (100 %)
Tabela 4: Experiência dos enfermeiros na aplicação do
processo de enfermagem, RJ, 1993.
Experiência na aplicação Instituição
A (%) B (%)
Sim, continuamente 21 (42 %) 5 (15 %)
Sim, esporadicamente 7 (14 %) 4 (11,5 %)
Sim, como estudante 15 (30 %) 18 (53 %)
Nunca tive 0 (0 %) 1 (3 %)
Sim, como estudante e esporadicamente 2 (4 %) 4 (11,5 %)
Sim, continuamente e como estudante 2 (4 %) 1 (3 %)
Não respondeu 3 (6 %) 1 (3 %)
Total 50 (100 %) 34 (100 %)
Fonte: Os autores.
Fonte: Os autores.
R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004. 95
Nossa situação é até privilegiada, porque
a gente tem todo o processo aqui no
Hospital. Desde a implantação do
Hospital a gente segue todos os passos na
questão de histórico, nós temos uma
prescrição de enfermagem, um plano
diário de cuidados e a evolução. Isto por
se trata de um Hospital Escola.
Todavia a instituição B é um Hospital-Escola
e não adota a metodologia por não fazer parte
da filosofia daquela instituição. Entretanto,
os enfermeiros desse hospital dizem que está
ocorrendo esforços para implantação da
metodologia da assistência no Hospital B.
A metodologia da assistência está
começando a ser implantada aqui no
Hospital. Então vai começar pelo
histórico de enfermagem feito pela
internação e alta. Depois vão existir
clínicas que vão começar a implantar o
processo de enfermagem. Todavia aqui na
clínica médica ainda não está sendo feito.
Na expressão dos enfermeiros pesquisados do
hospital que adota a metodologia consideramna
como função ordinária do trabalho
institucional do enfermeiro, embora busquem
adaptações conforme a realidade. Na instituição
que não adota a metodologia formalmente,
constatamos a existência do uso eventual do
processo de enfermagem. Além disso, há
referência da existência de um processo
informal que indica uma preocupação, mesmo
que elementar, em sistematizar a prática
profissional. Diz um depoente:
Agora, em relação a metodologia
da assistência, é como
eu falei a coisa é muito no
sufoco. A gente faz de maneira
inconsciente, não é uma coisa
comumente planejada.
A Tabela 5 nos indica que 46% dos
enfermeiros pesquisados da instituição
A e 14,7% dos enfermeiros
depoentes da instituição B utilizam
a metodologia em todos os pacientes.
Certamente, esses dados nos apontam
uma sensível diferença e indicam, também,
que uma grande parcela não aplica o
processo em todos os pacientes. Apesar de a
instituição B não utilizar o processo de enfermagem
em todos os pacientes, nota-se uma
priorização na aplicação em pacientes graves
(35,3%) e em casos esporádicos (20,6%).
Faço levantamento das necessidades,
repassando os cuidados, fazendo os que
acho que requerem a atuação do
enfermeiro, delegando o resto.
A adaptação do processo de enfermagem na
prática profissional nos aponta dois aspectos.
Primeiro que o enfermeiro busca uma saber que
o instrumentalize. Segundo, que o processo de
enfermagem, sendo uma produção acadêmica,
com enfoque individualista, não atende às reais
necessidades do trabalho. Daí procurar-se criar
adaptações, implantando o processo nos locais
em que a proporção enfermeiro/leito seja
adequada. Por exemplo, na consulta de enfermagem,
no atendimento aos pacientes graves,
nas unidades fechadas, entre outros.
Há de se ver, também, que existe um planejamento
das atividades, mesmo que seja
informal, uma espécie de processo oculto que
é norteado pelas condições da instituição hospitalar,
que pode ou não, servir de interesse
para a enfermagem .
O processo de enfermagem não é utilizado em
todas as suas etapas na prática, conforme
indicam os dados da Tabela 6, onde a maioria
Utilização da metodologia Instituição
A (%) B (%)
Sim, em todos os pacientes 23 (46 %) 5 (14,7 %)
Sim, somente nos pacientes graves 6 (12 %) 12 (35,3 %)
Sim, em casos esporádicos 13 (26 %) 7 (20,6 %)
Não utiliza 3 (6 %) 9 (26,5 %)
Não respondeu 4 (8 %) 1 (2,9 %)
Total 50 (100 %) 34 (100 %)
Tabela 5: Opinião dos enfermeiros sobre a utilização
do processo de enfermagem na prática, RJ,
1993.
Fonte: Os autores.
96 R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004.
utiliza algumas etapas do processo: 64% dos
depoentes da instituição A e 73,5% dos
depoentes da instituição B. O que confirma
que há uma adaptação do processo de enfermagem
e sugere sua sobrevivência, mesmo
que precária.
Os enfermeiros mais qualificados procuram
falar de um processo de enfermagem mais
completo, próximo do preconizado pela
literatura. E sobre as etapas do processo
utilizadas pode-se falar da evolução e da prescrição.
Na prática profissional a efetivação de
todas as etapas é quase impossível. É importante
que o processo de enfermagem seja
inserido de modo a atender as reais necessidades
do ensino e da prática de enfermagem.
A utilização de algumas etapas do processo,
como a prescrição de enfermagem e a
evolução, indicam o caráter adaptativo e
fracionado que o referido processo tem na
prática do enfermeiro. A aplicação de partes
de determinados processos ou teorias na
prática, não implica na adoção de um deles
de forma integral.
Eu acho que em todos os hospitais por
onde eu passei, eu nunca vi um plano
completo, sempre vi o plano partido.
O processo todo não é feito, aqui e nem
nos outros lugares que trabalho.
Constatamos, mais uma vez, que não há uma
rejeição total à metodologia da assistência de
enfermagem; pelo contrário, vemos tentativas
de adaptação do processo de enfermagem na
prática pois os enfermeiros pesquisados, em
sua maioria, afirma, que o processo é útil na
prática.
Se você têm um metodologia para
organizar o seu trabalho, ele rende muito
mais, você trabalha muito melhor.
5 ENSINO E PRÁTICA DA
METODOLOGIA
CIENTÍFICA DA
ASSISTÊNCIA DE
ENFERMAGEM
Ficou evidente nesse trabalho que há uma
dicotomia entre o ensino e a prática de
enfermagem no que tange a metodologia da
assistência. O que nos leva a refletir melhor
sobre a realidade e a buscar novas maneiras
de agir próximas às nossas reais necessidades.
Os dados da Tabela 7 mostram que 52% dos
depoentes da instituição A e 61,8% dos
depoentes da instituição B consideram que a
formação não é coerente com a prática
profissional, no que diz respeito a metodologia
da assistência. Estes achados entram em
acordo com os de Utyama (1990) que diz que
70,8% dos 24 enfermeiros entrevistados
consideram o ensino do processo com a prática
profissional inadequado.
Tabela 6: Etapas da metodologia da assistência
utilizadas pelos enfermeiros,
RJ, 1993.
Etapas utilizadas Instituição
A (%) B (%)
Todas 10 (20 %) 2 (5,9 %)
Nenhuma 4 (8 %) 4 (11,8 %)
Algumas 32 (64 %) 25 (73,5 %)
Não respondeu 4 (8 %) 3 (8,8 %)
Total 50 (100 %) 34 (100 %)
Coerência entre a Instituição
formação e a prática
A (%) B (%)
Sim 19 (38 %) 9 (26,4 %)
Não 26 (52 %) 21 (61,8 %)
Parcialmente 1 (2 %) 0 (0 %)
Não respondeu 4 (8 %) 4 (11,8 %)
Total 50 (100 %) 34 (100 %)
Tabela 7: Opinião dos enfermeiros sobre a
coerência entre a formação e a
prática profissional no que se
refere a metodologia da assistência
de enfermagem, RJ, 1993.
Fonte: Os autores.
Fonte: Os autores
R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004. 97
A formação baseada em literatura estrangeira,
distante da realidade social, conduz a
uma posição idealista da profissão de
enfermagem. A prática é determinada pelas
condições de trabalho direcionada pela
política institucional, que leva a um fracionamento
do processo de trabalho, anulação e
a perda de uma visão sobre a totalidade. É
preciso repensar a prática e o ensino de enfermagem
dentro de um contexto sóciohistórico
e não como um processo desvinculado
da realidade social. Neste contexto
relata um depoente:
Quando nós estamos na Faculdade é
ensinado mais a ser um enfermeiro
assistencial. Quando você passa para a
realidade, vai trabalhar no hospital, quer
seja público ou privado, você passa a ser
um administrador do serviço de enfermagem.
Então fica difícil você como
enfermeiro implantar o processo de
enfermagem porque você fica envolvido
com mil coisas administrativas, coisas até
do departamento pessoal e a assistência
mesmo fica em segundo plano
Obviamente, o conflito existente entre a docência
e a assistência é fruto de um contexto
histórico que levou à cisão entre os enfermeiros
docentes e os assistenciais. Isso ficou
evidente no trabalho, quando se fala que o
docente trata de teoria e o enfermeiro do fazer,
que é bem expressivo no hospital universitário,
onde se faz uma referência à integração
docente-assistencial.
Não há número suficiente de enfermeiros
para viabilização da metodologia
científica, e nem as instituições (inclusive
o hospital universitário) tem esse objetivo.
Além do mais, há uma clara divisão
entre o profissional ‘teórico’ e o prático,
pois em geral os profissionais que gostam
de atuar na teoria não tem participação
efetiva no campo.
Um dos aspectos interessantes nesse trabalho
é perceber que os depoentes ao responderem
sobre a metodologia se reportaram à graduação
e não necessariamente ao saber produzido
por suas práticas. Desta maneira fica evidenciando
o aspecto contraditório, entre o fazer
versus o saber no hospital universitário. Além
do mais, os enfermeiros da instituição B
sugeriram maior participação da Escola de
Enfermagem no Hospital Universitário.
A Tabela 4 demonstra que 30% do pessoal
pesquisado da instituição A e 53% do da instituição
B só tiveram experiência efetiva com
o processo de enfermagem na graduação. Esta
formação sugere que o processo tem se aplicado
mais na graduação do que na prática cotidiana
do enfermeiro:
Minha formação diz que seria possível e
necessário sua aplicação, na realidade
isso não ocorre.
A necessidade de se por em prática tudo que
se aprende, expressa a realidade da prática
do enfermeiro, onde predomina o fazer,
referendado pelo utilitarismo e por um pragmatismo,
de modo que não há uma valorização
dos conceitos teóricos assimilados,
mas de improvisações frente às condições
precárias da prática.
Todavia, a metodologia permanece como uma
referência com idas e vindas, que pode instrumentalizar
a prática, organizando-a e permitindo
uma assistência personalizada.
Nota-se como uma referência positiva da
formação quando ela subsidia a prática do
enfermeiro instrumentalizando para a ação
frente a realidade do trabalho. É notório que
há comumente conflitos entre a teoria e a
prática, mas isto pode ser amenizado, à
medida que o ensino atente para as reais
transformações sócio-históricas. Tal posição
passa pelo processo de conscientização,
pela superação da despolitização que aponta
para a realidade contraditória
(ALVES, 1987).
98 R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004.
6 IMPORTÂNCIA DA
METODOLOGIA
CIENTÍFICA DA
ASSISTÊNCIA DE
ENFERMAGEM NA
PRÁTICA
Apesar de as posições a respeito da metodologia
da assistência serem polêmicas neste trabalho,
consideramos que os enfermeiros investigados
falam da necessidade de um suporte que
respalde a assistência de enfermagem.
Não tenho dúvida que a metodologia é
super importante para a prática, porque
sem uma boa metodologia, não se tem
condição de fazer um bom trabalho.
A metodologia da assistência, por ter sido
iniciada na vida acadêmica, entra em contradição
com a realidade do trabalho do
enfermeiro, de modo que a aplicação é adaptada
e com aproveitamento de certas etapas
do processo. Entretanto ela é considerada por
uma significativa parcela como fundamental
para a prática. Isto está ilustrado na Tabela 8
onde 34% dos depoentes da instituição A e
44,1% dos depoentes da instituição B
consideram o processo de enfermagem como
fundamental para a prática.
A metodologia é importante segundo os
depoentes pelos seguintes motivos: valoriza
o trabalho do enfermeiro, registra as ações de
enfermagem, organiza a assistência, permite
uma visão holística do cliente e pode favorecer
uma uniformização da linguagem do enfermeiro.
Embora o processo de enfermagem seja
considerado importante, têm-se clareza de que
ele não é aplicado de modo eficaz por exercer o
enfermeiro atividades consideradas burocráticas.
Sobre as razões da não utilização da metodologia,
consideramos que as condições de
trabalho na saúde agem como fatores que
conduzem o enfermeiro a uma despolitização
que favorece o desconhecimento sobre seus
reais papeis. A falta de tempo para realizar a
metodologia ou uma melhor assistência direta
ao paciente é uma constante no discurso do
enfermeiro. O trabalho na instituição, muitas
vezes compartimentalizado, pouco reflexivo,
força o enfermeiro a ocupar um espaço que
não favorece a percepção da totalidade do seu
trabalho. Aliado a isto, o saber médico hegemônico
institucionalizado faz com que a
prática de enfermagem lhe sirva de esteio.
Todavia a inquietude dos enfermeiros frente
a realidade do trabalho e o desejo de buscar
uma racionalidade coerente do trabalho,
apontam para uma perspectiva de mudança
na profissão.
Dificuldades várias: leitos extras, déficit
de funcionários para cumprir prescrições
de enfermagem corretamente e na
íntegra. Na atual situação do hospital com
tanta falta de funcionário e o acúmulo de
pacientes [...] Há muitos remanejamentos,
o que dificulta muito o trabalho.
Tabela 8: Opinião dos enfermeiros sobre a importância do emprego da
metodologia científica da assistência de enfermagem na
prática profissional, RJ, 1993.
Importância da metodologia Instituição
da assistência na prática
A (%) B (%)
É fundamental para a prática 17 (34 %) 15 (44,1 %)
Sua utilização é de relativa importância 10 (20 %) 6 (17,6 %)
Pouco respalda a prática 4 (8 %) 4 (11,8 %)
Não tenho posição definida 5 (10 %) 5 (14,7 %)
Não respondeu 4 (8 %) 4 (11,8 %)
Total 50 (100 %) 34 (100 %)
Fonte: Os autores.
R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004. 99
7 CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Concluímos que os objetivos iniciais foram
atingidos pois conseguimos entender a
realidade do enfermeiro frente a metodologia
da assistência. Os achados das entrevistas
vieram confirmar os dados qualitativos e
aprofundar a percepção do enfermeiro em
relação a metodologia. Tais resultados demonstram
ser a metodologia importante para
a prática profissional por facilitar o trabalho
e valorizar as ações dos agentes de enfermagem
por meio dos registros. Todavia, os
desabafos dos enfermeiros em relação às
condições precárias de trabalho mostram a
existência de entraves para ações de
enfermagem coerentes com a formação.
O trabalho permitiu o surgimento de determinadas
questões que apontam as condições
de trabalho do enfermeiro, tais como: desproporção
enfermeiro/leito, ausência de uma
filosofia de trabalho, distorção entre a formação
e a prática, problemas referentes às
atribuições do enfermeiro, preocupação em
conceder uma assistência de qualidade,
sobrecarga de trabalho, e assim por diante.
Tais questões indicam uma inquietação e
insatisfação do enfermeiro com as condições
de trabalho na saúde que impede uma assistência
de enfermagem de qualidade e, também,
que venha a reconhecer o papel social
do enfermeiro.
Embora o processo de enfermagem não seja
aplicado de modo efetivo em todas as situações,
consideramos que o enfermeiro adota
um planejamento no seu trabalho, mesmo
de modo informal. Isto nos permite constatar
que existe um processo oculto na prática, que
expressa as condições de trabalho do enfermeiro.
Não obstantes as críticas relacionadas à metodologia
da assistência, considera-se que ela,
em certas situações, fundamenta a prática da
enfermagem e permite maior organização da
assistência. Além disso, percebe-se uma
necessidade de buscar uma racionalidade ou
um saber que respalde esta prática.
Nota-se que os enfermeiros que adotam a
metodologia consideram-na como parte da
rotina de trabalho. Entretanto, as constantes
referências às precárias condições de trabalho
e ao ensino idealista forçam adaptações na
implementação do processo. Percebe-se um
hiato entre a graduação e o trabalho do
enfermeiro no que se refere a metodologia da
assistência.
Os achados nos levaram a elaborar algumas
propostas que, no nosso entender, possam
minimizar as contradições relacionadas à
metodologia da assistência de enfermagem:
– é importante que a equipe de enfermagem
realize reuniões para discutir estratégias
para planejar a assistência de modo
criativo, visando atender às condições de
trabalho;
– repensar o ensino da metodologia nas
universidades e procurar inseri-lo de
acordo com as condições das práticas de
saúde no Brasil;
– promover trabalhos comuns entre os docentes
e os assistenciais no sentido de permitir
uniformização de estratégias nos hospitais
universitários, tendo em vista que os
enfermeiros demandaram maior participação
das Escolas de Enfermagem no Hospital
Universitário;
– rediscutir as reais atribuições do enfermeiro
frente as condições de trabalho, o ensino e
a lei do exercício profissional É importante
repensar a utilização dos serviços ditos
burocráticos para a assistência e para a
construção de um saber que dê sustentação
à prática de enfermagem.
Uma assistência contextualizada com a realidade
social que cuide do sofrimento psíquico
e físico dos clientes bem como dos trabalhadores
de enfermagem se faz necessária.
Desta forma estaremos buscando uma maneira
coerente de pensar e fazer na enfer100
R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004.
magem. A metodologia pode funcionar como
um fio condutor dessa procura, mesmo que
futuramente busquemos outros recursos para
cuidar do outro de modo eficaz.
Nurses perception concerning scientific
methodology on the nursing care
ABSTRACT: This paper aimed at doing critical assessment of the scientific methodology on
the nursing care facing the nurse’s reality in the practice. It is a qualitative as well as quantitative
research. 84 nurses working at two universities of Rio de Janeiro State answered the protocol
elaborated and 26 were interviewed. The following categories: knowledge, methodology and
professional practice, and the nursing process importance. It is concluded that the working
conditions, the institution politics, the reduced manpower and the medical hegemony, make
it more difficult for the adoption of the nursing process in the practice field. There is a
dichotomy between the theoretical concepts learned in the university graduation course and
the professional practice is considered by a significant group as fundamental for the
professional process.
Keywords: Nursing. Care. Methodology.
Percepciones de los enfermeros sobre la
metodología de la assistencia en
enfermería
RESUMEN: Este trabajo cumple una evaluación crítica de la metodologia científica de la
assistencia de enfermeria en el contexto del trabajo del enfermero. Se trata de una investigación
cuanticualitativa. Fueron aplicados cuestionarios en 84 enfermeros y cumplidas 26 entrevistas
en sujetos internados en hospitales de dos universidades en el Estado del Rio de Janeiro. Se
eligió las seguientes categorías: conociemento, metodología y práctica profesional, enseñanza
y práctica de la metodología, importancia del processo de enfermería. Se concluye que las
condiciones de trabajo, la política institucional, la deficiencia de profesionales y la hegemonia
médica dificultan la implantación del proceso de enfermería en la práctica. Existe una
dicotomía entre los conceptos teóricos adquiridos en la graduación y la práctica profesional.
El proceso es considerado por una parcela significativa como fundamental para la práctica
profesional.
Palabras-clave: Enfermería. Asistencia. Metodología.
R. de Pesq.: cuidado é fundamental, Rio de Janeiro, ano 8, n. 1/2, p. 87-101, 1./2. sem. 2004. 101
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quinta-feira, 14 de maio de 2009

INTRODUÇÃO À METODOLOGIA CIENTÍFICA - EDSON PAIM & ROSALDA PAIM


CAPÍTULO I DO LIVRO SISTEMISMO ECOLÓGICO CIBERNÉTICO - 3a. Edição Exgotada

Direitos Autorais Reservados para os Autores

A Metodologia Científica constitui uma disciplina instrumental, um roteiro para a concretização da pesquisa.

Na Grécia antiga methodos significava “caminho para chegar a um fim”.
Portanto, etimologicamente, método quer dizer caminho, direção, rota, orientação para se atingir determinado propósito, alvo, fim, objetivo ou meta. Representa um conjunto de meios ou instrumentos dispostos adequadamente para se atingir um objetivo.

Como ponto de partida, vejamos que o “termo Método tem dois significados fundamentais: 1o. Qualquer pesquisa ou orientação de pesquisa; 2o. Uma técnica particular de pesquisa. No primeiro caso, não se distingue de “investigação” ou “doutrina”. O segundo significado é mais restrito e indica um procedimento de investigação organizado, repetível e auto corrigível, que garanta a obtenção de resultados válidos. Ao primeiro significado referem-se expressões como “Método hegeliano”, “Método dialético”, etc., ou mesmo “Método geométrico”, “Método experimental”, etc. Ao segundo referem-se expressões como “Método silogístico”, “Método residual e, em geral os que designam procedimentos específicos de investigação e verificação.1”
A palavra método pode designar quatro coisas distintas: 1a. lógica ou parte da lógica que estuda os métodos; 2a. lógica transcendental; 3a. o conjunto de procedimentos metodológicos de uma ou de várias ciências e, 4a. a análise filosófica desses procedimentos.
O termo metodologia indica, freqüentemente, um conjunto de procedimentos técnicos de averiguação, verificação ou pesquisa, disponível para uma disciplina específica ou, para grupos de disciplinas.
O método científico representa a maneira como o cientista opera no sentido de elucidar, explicar ou controlar a realidade.
A natureza, bem como a própria realidade inteira - conjunto de seres, coisas, eventos e processos - responde tudo que o pesquisador desejar saber, mas para isso, é necessário que ele saiba interrogá-la e, a melhor receita para atingir tal propósito é a adequada utilização do método científico.
O método científico é de aplicação geral, podendo ser comum a várias ciências, ou melhor, comum a todos os setores do conhecimento científico. O que varia, o que diverge é o objeto de estudo de cada ramo da ciência, exigindo-se adaptações e técnicas específicas.
Entretanto, cada ciência tem seu objeto, seu corpo de conhecimentos, sua teoria, seu discurso característico, seus critérios de verdade e. quase mesmo, um método próprio.
Assim, o método epidemiológico é, na realidade, o método científico, adaptado e aplicado ao estudo da história natural das doenças, isto é, a investigação a respeito do local em que uma moléstia incide, quando acontece, porque ocorre e como evolui, qual a sua natureza, porque atuam e como atuam os agentes patogênicos e os elementos capazes de funcionar como veículos de transmissão e, como se comportam os hospedeiros, envolvendo ainda, todas as relações ecológicas existentes entre agentes patogênicos, transmissores e hospedeiros, ou seja, as interações existentes entre eles no ambiente do qual compartilham.
Método “é o procedimento ou conjunto de procedimentos que servem como instrumento para satisfazer as necessidades da investigação”.
Para Piovesan.2, método é o conjunto de regras da pesquisa científica.
Método é um roteiro sistematizado para orientar o pensamento, investigar a realidade, atuar sobre a mesma ou comunicar o resultado de tais atividades.
“Método é um conjunto de etapas, ordenadamente dispostas, a serem vencidas na investigação da verdade, no estudo de uma ciência ou para alcançar um determinado fim. 3”
Destarte, é também, o conjunto de ações sistematizadas objetivando a produção, a utilização ou a comunicação do conhecimento científico.
Representa, pois, a sistematização em qualquer setor das atividades humanas. Alicerça-se na pesquisa, ou seja, na coleta sistematizada de dados, seguida de sua análise e interpretação.
“Reserva-se a palavra método para significar o traçado das etapas fundamentais da pesquisa, enquanto a palavra técnica significa os diversos procedimentos ou a utilização de diversos recursos peculiares a cada objeto da pesquisa, dentro das diversas etapas do método. Diríamos que a técnica é a instrumentação específica da ação, e que o método é mais geral, mais amplo, menos específico. Por isso, dentro das linhas gerais e estáveis do método, as técnicas variam muito e se alteram e progridem de acordo com o progresso tecnológico.4”
A técnica é, pois, meio auxiliar do método. Consiste em aplicações específicas e, portanto, mais restritas.
O método científico empírico, experimental, foi proposto inicialmente por Francis Bacon5, através da obra designada “Da Proficiência do Saber, Divino e Humano” (1605), depois desenvolvido no Novum Organum, do mesmo autor (l620), em contraposição ao método escolástico, então prevalente, herdado da idade média, quando a igreja católica, através da obra de São Tomás de Aquino (1225-1274), adotara oficialmente o método aristotélico, dominando o ensino e o estudo da natureza, com base em conceitos teológicos sobre Deus e o universo.
Ele atacara o escolasticismo que considerava estéril, propunha o raciocínio indutivo - um sistema que, a partir de fatos específicos observáveis - podem se efetuar amplas generalizações, verificando-as, a cada passo, para detectar possíveis exceções e rejeitar ou rever tais generalizações, com base nessas exceções.
Foi o advento e progresso do método científico que permitiu o avanço da ciência e da tecnologia.
Bacon afirmara, categoricamente, que o método correto de pesquisa científica, isto é, o método indutivo, poderia dar ao homem o domínio da natureza.
“Tentando renovar e reorganizar as ciências, Bacon6 procurou um sistema de metodologia científica inteiramente novo; a necessidade da prova na determinação dos fenômenos fundamentais da natureza era seu pré-requisito filosófico. Seria possível estruturar a base de uma nova filosofia não fundada em Aristóteles ou qualquer outra autoridade da Antigüidade, pelo acúmulo suficiente de observações e fatos.”
O método cientifico indutivo foi desenvolvido, mais tarde, por Galileu7 (1632), o qual aderiu à teoria heliocêntrica de Copérnico.8 O notável físico suíço Friederich Dessauer, comentou a respeito de sua imensa importância e influência na história da ciência: “De todas as conquistas de Galileu, sua maior dádiva a posteridade foi o método indutivo, centro de todas as ciências exatas; aperfeiçoado ainda, nos anos que lhe seguiram, provou constituir-se na chave do ser, abrindo sempre novas estradas, de profundidade cada vez maior. E foi através do método indutivo que o nosso conhecimento do mundo cresceu e se tornou um milhão de vezes maior que o dos antigos.”
Para Galileu, o método experimental se constituiria de dois momentos - a indução e a dedução, que viriam a se transformar, na realidade, em dois métodos, gerando duas correntes antagônicas do pensamento - o empirismo inglês, dos quais são expoentes, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume e o racionalismo de Descartes, Melebranche, Espinoza e Leibniz.
“Coube ao gênio de René Descartes10 (1637), balizar o roteiro para a investigação dos problemas científicos, através do Discurso sobre o Método”.
Antes e, acima de tudo, Descartes foi um matemático, um dos pensadores mais originais do mundo, em seu campo. Criou a geometria analítica, unindo a geometria à álgebra.
Em sua época, a matemática era o principal instrumento para descobrir fatos da natureza.
O método de Descartes é, portanto, matemático e analítico.
O racionalismo cartesiano é sintetizado pela frase “penso, logo existo” e postula que a verdadeira essência do ser humano consiste na razão. A filosofia e o método de Descartes são, pois, racionalistas.
O método de Descartes ou método cartesiano, além de matemático e analítico é, pois, racional.
O termo cartesiano correspondente ao nome de Descartes em latim - Renatus Cartesius.
Descartes concluíra que o método matemático era o instrumento ideal para ser aplicado em todas as esferas do saber e que daria resultados de igual precisão e confiança em metafísica, lógica e ética. Para Descartes tudo aquilo que não se podia traduzir em termos matemáticos era irreal.
Em contraposição ao raciocínio indutivo (que vai do particular ao geral), proposto por Bacon e aperfeiçoado por Galileu, Descartes postulava o primado do método dedutivo (que do geral chega ao particular), o qual permitiria as descobertas através do encadeamento lógico de hipóteses formuladas a partir da atividade primordial da razão.
Como Galileu e Newton11, Descartes via o universo como uma máquina gigantesca, semelhante a um mecanismo de relógio, na qual tudo era previsível e mensurável.
. O método cartesiano, além de matemático, analítico, racionalista e dedutivo é, também, mecanicista.
De acordo com estas premissas, o Universo inteiro poderia ser explicado pelas leis da matemática e da mecânica.
O Discurso sobre o Método, de René Descartes, foi considerado por Butterfield12, autor de “As Origens da Ciência Moderna” como um dos livros realmente importantes da nossa historia intelectual, julgamento corroborado por quase quatro séculos de influência universal e afirma que “a concepção cartesiana de uma ciência universal, única, tão unificada, tão ordenada, tão interligada, talvez tenha sido uma das suas mais notáveis contribuições à revolução científica”.
O positivismo, derivado do “cientificismo racionalista”, baseado na concepção do poder absoluto da razão em conhecer realidade e traduzi-la mediante leis naturais, foi criado pelo pensador francês, Augusto Comte13, reforçando a crença no modelo matemático, físico e mecânico.
Comte pretendeu conhecer e explicar a natureza por meio da observação e da experimentação, procurando as leis que a regem, não se buscando, entretanto, leis gerais além do que fosse permitido pela experimentação e pela dedução ou pelo raciocínio matemático, enquanto tudo que ficasse para além deste domínio seria metafísico e não teria valor.
O positivismo foi também designado organicismo, em virtude de conceber a sociedade como um organismo, constituído de partes integradas e coesas, funcionando harmonicamente, consoante o modelo físico-mecânico, introduzindo, também, a idéia de que uma sociedade é algo mais do que o simples somatório dos indivíduos, em contraste com o reducionismo das idéias, então, vigentes.
Augusto Comte, malgrado a característica reducionista do positivismo, pretendeu alçá-lo em nível de universalidade, perseguindo o ideal de Descartes de unificação da ciência e, buscando construir uma pretensa religião da humanidade.
Entre os filósofos iluministas já se encontravam adeptos da idéia de que toda a matéria, incluindo os processos vitais que, consistindo em movimento dessa matéria, obedeciam às leis naturais e que esses princípios deveriam, também, nortear o conhecimento racional da sociedade, buscando-se as leis naturais da organização social.
Não obstante a filosofia da Ilustração já encerrasse potencial passível de conduzir à descoberta das bases materiais das relações sociais, formulando-se a concepção reducionista de uma sociedade representada pelo somatório de individualidades ou “átomos sociais”, o que consistiu no máximo que seus filósofos puderam atingir e, para o quais o comportamento social seria resultado da estrita manifestação da vontade das consciências individuais.
Embora o positivismo reconhecesse que os princípios reguladores do mundo físico e do mundo social diferiam em sua essência, estendeu este raciocínio até mesmo para o estudo da sociedade, cujo conhecimento designou como “física social”, antes que o próprio Comte cunhasse o termo Sociologia, constituindo-se na primeira corrente do pensamento sociológico e atraindo os primeiros cientistas sociais para o seu método de investigação.
Outras correntes do pensamento sociológico enriqueceram o método científico, possibilitando a adoção de metodologias mais específicas para o estudo da sociedade. Entre estas se destacam o estruturalismo, o funcionalismo, a dialética, a fenomenologia, o sistemismo, além de metodologias alternativas, tais como a pesquisa-ação, a pesquisa participativa e a hermenêutica.
O sistemismo será abordado com mais detalhes no Capítulo II - Enfoque Sistêmico e, no Capítulo X - Sistemismo Ecológico Cibernético, quando serão feitas considerações sobre o parentesco entre o Sistemismo e o Estruturalismo.
Com referência à Dialética, pode-se distinguir quatro significados fundamentais: a) - como método da divisão, b) - como lógica do provável, c) - como lógica e, d) - como síntese dos opostos e, desta última, trataremos, a seguir:
O racionalismo hegeliano postula que a razão ou lógica pura, não só concebe as coisas como lhe dá origem, provocando a ação, não existindo uma linha divisória entre o conhecimento filosófico e sua aplicação para explicação do fato científico e, a vida muda constantemente como resultado de uma luta dialética de idéias opostas, nas quais os contrários resultam numa síntese, somente para engendrar suas próprias contradições.
Embora sem expressar a evolução histórica do termo, a Dialética corresponde ao “processo em que há um adversário a ser combatido ou uma tese a ser refutada e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito, ou então, que é um processo resultante do conflito ou da oposição de dois princípios, dois momentos ou duas atividades quaisquer”.
Para Hegel, a realidade inteira move-se dialeticamente. .Assim, a filosofia hegeliana vê em toda parte tríades de teses, antíteses e sínteses, nas quais a antítese corresponde à negação, ao oposto, ao outro da tese, enquanto a síntese constitui a unidade e, ao mesmo tempo, a certificação de ambas.
Hegel14, ao conceber a realidade, entende haver no mundo uma idéia absoluta capaz de tomar consciência de si mesma. Inicialmente, sob a forma de espírito subjetivo ou individual, depois, mediante a forma de espírito objetivo ou coletivo (na família, no estado). A partir daí, eleva-se para o absoluto. Destarte, os espíritos se dirigem, gradativamente, para a unidade do Espírito ou da idéia absoluta, a qual se dispersa a fim de tomar consciência de si. A realidade verdadeira seria a realidade do pensamento. Para Hegel, “tudo o que é real é racional; o que é racional é real”. O mundo, como as coisas e o eu não seriam nada mais que a exteriorização do Espírito. Nesta realidade há um constante devir que se processa na afirmação, na negação e na negação da negação (tese, antítese e síntese).
É nesta visão que deve ser entendida a Fenomenologia do Espírito, de Hegel: “o auto-reconhecimento do Absoluto como espírito dá lugar a uma série de figuras lógicas e históricas que são os graus que o Espírito deve percorrer para alcançar o reconhecimento e a posse de si mesmo. A tarefa primeira da Filosofia é, por isso, a de voltar àquela série de figuras da história ideal do Espírito; por isso a primeira parte do sistema científico da Filosofia deve ser uma Fenomenologia do Espírito, ou seja, percorrer todas as figuras e cada grau já percorrido pelo Espírito na sua história ideal e na sua cronologia. No processo, cada momento do espírito é superado por um momento mais elevado e mais completo. Isso, porém, não quer dizer que a figura em que o Espírito se apresentava no seu grau inferior fosse falsa, apenas não era adequada. 15”
Na seção de autoconsciência da Fenomenologia do Espírito, Hegel16 inicia a estudar figuras tipicamente históricas, tais como as clássicas passagens dedicadas ao antagonismo patrão escravo (dialética patrão-escravo), demonstrando a recíproca compenetração das categorias de autonomia e dependência. Para Hegel, o escravo depende do patrão tanto quanto este depende do escravo, uma vez que necessita dele. Através da luta entre autonomia e dependência (luta dos contrários), atinge-se como resultado concreto o desenvolvimento do Espírito, isto é, o nascer do sentimento de liberdade.
“Para Hegel17, o processo dialético da realidade, que nós chamamos objetiva, não é mais do que uma manifestação exteriorizada do mundo. Para Marx18, pelo contrário, o mundo material existe independentemente de todo o espírito e é na matéria, enquanto tal que se produzem as teses e antíteses que levam as sínteses provisórias, que por sua vez, marcam as fases da evolução cósmica. A dialética do pensamento é um reflexo da dialética das coisas. Também em Hegel encontravam-se afirmações análogas, mas na filosofia de Hegel as próprias coisas eram apenas o reflexo do pensamento.”
Hegel preconiza o primado da consciência sobre a matéria, enquanto Marx e Engels postulam o contrário - o primado da matéria sobre a consciência.
A inversão da dialética hegeliana é, desta maneira, expressa por Marx e Engels19: “o sistema hegeliano estava de cabeça para baixo; nós o pusemos de pé”.
Na visão marxista da realidade, os processos dialéticos que caracterizam essencialmente a matéria, somente são observáveis no pensamento como reflexo do mundo material. Teríamos, assim, uma estrutura da realidade, com suas leis e, uma superestrutura determinada pela primeira.
As relações econômicas, segundo Marx, têm supremacia sobre todas as outras, tornando-se determinação estrutural e, por sua vez, estas estruturas determinarão as relações políticas.
As relações econômicas que se efetuam entre um sistema social e outro, podem ser sintetizadas como intercâmbios de matéria, energia e informações.
“A Economia, que engloba os esforços do homem no sentido de se apropriar da matéria e explorá-la, constitui a estrutura essencial das relações humanas, e as ideologias não passam de uma superestrutura. Ou seja, as relações humanas que se estabelecem na Economia, quer dizer, no esforço do homem para se apropriar da matéria, constituem a estrutura determinante da vida da humanidade. O trabalho, como matéria prima se transforma em produto e este em mercadoria, objeto de troca por dinheiro, e este por sua vez, em capital. Então, o trabalho humano, o próprio homem torna-se coisificado, e a mercadoria um fetiche. A mercadoria fetichizada aprisiona o trabalho humano e, de uma certa forma, o valor do homem. A mercadoria, no seu valor de troca, aparece como a mesma realidade humana e a torna coisa. Mas o valor de troca é só um aspecto que encobre as coisas e não nos dá a realidade. É preciso que a realidade se revele, se torne fenômeno. 20”
A lógica dialética marxista ao penetrar na consciência do homem constitui método para reinterpretar e transformar o real.
“A lógica dialética nasce pelo fato de que se considera a realidade intimamente contraditória, isto é, uma unidade de ser e não ser juntos (tendo como própria a tese de Hegel, de que “todas as coisas têm a contradição em si mesmas”. Conseqüentemente, considera-se, que sendo a realidade assim feita, somente a dialética, a lógica da contradição, é adequada para entendê-la (enquanto a lógica não contraditória, justamente enquanto exclui a contradição, daria uma imagem falsa da realidade). A natureza é dialética, a sociedade também é dialética; por isso, elas não podem ser conhecidas a não ser através de uma análise dialética.21”
O materialismo marxista, referindo-se ao aspecto racional da realidade, afirmava que o sistema de idéias, então vigentes, não era racional, mas deveria se transformar em um sistema racional.
Luigino Valentini22 expressa: Reconhecemos o valor que cada lógica tem na investigação de aspectos particulares da realidade, porém, a reflexão sobre o vivido não pode ser confiada à racionalidade da lógica positiva das ciências, porque esta objetiva a realidade humana e a reduz a sua totalidade. A lógica pragmatista e a dialética, por si só são inadequadas a colher aspectos do vivido que fogem à sua ótica enquanto elas absolutizam o homem em sua finitude. Não é completamente adequada a lógica conjetural a fazer este tipo de investigação, enquanto, mesmo que seja capacitada a colher parte do real, ela atomiza a realidade humana. As intuições da visão do mundo da teoria da relatividade que valoriza a participação subjetiva do homem no conhecimento científico da realidade em sua globalidade nos encorajam a adotar como método de nosso estudo, a lógica transcendental. Ela procura a subjetividade em suas múltiplas relações, procura o transcendente a partir da condição humana da finitude, isto é, do aqui e agora do homem concreto na busca da realidade pelo compromisso e na necessidade da crença.”
O mesmo autor refere que a “lógica” pela qual se norteia para a leitura do real, assumindo o mesmo ponto de vista de Edmund Husserl23, é a Lógica Transcendental, o qual, ao elucidar a lógica de Platão, considera-a como “o lugar de indagação sobre as exigências essenciais de o verdadeiro saber e da verdadeira ciência”, o que corresponde à possibilidade que o homem tem de abarcar a realidade em toda a sua amplitude. Logo, a lógica seria alcançar um ponto de vista através do qual seria possível atingir o verdadeiro saber e a verdadeira ciência.
Pedro Demo24 considera “a dialética a metodologia mais conveniente para a realidade social, a ponto de a tomarmos como postura metodológica específica para essa realidade no sentido em que não se aplica à realidade natural porque esta é destituída de fenômeno histórico subjetivo... Dizíamos que entre as realidades natural e social há diferença suficiente não estanque. Entretanto, para além das condições objetivas, a realidade social é movida igualmente por condições subjetivas, que não são nem maiores nem menores... Na prática vamos encontrar não só dialéticas diferentes, divergentes, mas até mesmo contraditórias, como em qualquer campo metodológico”.
Este autor argumenta a favor da dialética histórico-estrutural que lhe parece a mais consentânea com a realidade histórica, porque equilibraria a contento o jogo das condições objetivas e subjetivas.
Edmund Husser25, autor de “Lógica Formal e Transcendental”, assim se expressa: “Se Lotze, num ditado que se tornou célebre, declarou que a tarefa mais alta do conhecimento não era medir o curso do mundo, mas compreendê-lo, nós, por nossa vez, devemos nos apropriar deste ditado, mutatis mutandis também para a Lógica, para o reino das formações lógicas, isto é, no sentido de que não podemos ficar satisfeitos com que a Lógica, nos moldes das ciências positivas, confira às teorias objetivas de uma forma metódica e reconduza as formas de uma possível autêntica teoria aos princípios e normas. Nós devemos sair do esquecimento de nós mesmos, característica própria das pessoas teóricas que, jogando-se na operação teórica às coisas, às teorias e métodos, não sabem nada sobre a interioridade de seu operar, isto é, do teórico que vive naquelas coisas teóricas e métodos, mas não tem o seu olhar tematicamente esta mesma vida operante. Somente através de uma clarificação de princípios que desça a profundeza da interioridade, onde atuam o conhecer e a teoria, tornar-se-á compreensível aquilo que é realizado como teoria e como ciência autêntica. Somente de tal forma se faz compreensível o verdadeiro sentido daquele ser que a ciência nas suas teorias tinha intenção de elaborar como verdadeiro ser, verdadeira natureza, verdadeiro mundo espiritual.”
Teceremos, agora, considerações sobre alguns aspectos de uma outra corrente filosófica e metodológica, a Fenomenologia.
Etimologicamente, Fenomenologia é o estudo ou ciência do fenômeno, considerado como tal tudo que aparece.
Foi instaurada por Husserl (1859-1938), na segunda metade do século passado, a partir das análises de Bretano sobre a intencionalidade da consciência, buscando a descrição, a compreensão e a interpretação de fenômenos que se apresentam à percepção. Objetiva modificar a relação do homem com o mundo (o ser no mundo) e melhor extrair seu sentido, constituindo-se numa abordagem que procura valorizar os aspectos subjetivos, além da característica de compreensão das ciências humanas, particularmente no que concerne ao fenômeno humano.
O método fenomenológico surge, em contraposição à objetividade e a matematização do conhecimento, características atinentes ao cientificismo, ao positivismo.
A Fenomenologia representa uma corrente filosófica que corresponde a uma terceira via entre o discurso especulativo da Metafísica e o raciocínio das ciências positivas, ou seja, aquela que, antes de todo raciocínio, nos colocaria no mesmo plano da realidade, isto é, representaria uma volta às “coisas mesmas” ou àquilo que é dado, que aparece na consciência.
A Fenomenologia seria a ciência capaz de preencher o espaço vazio deixado pela filosofia especulativa e pelo próprio positivismo, para o qual o conhecimento objetivo estaria imune às construções subjetivas da metafísica.
“No fundo, a fenomenologia nasceu no momento em que, colocando entre parênteses - provisória ou definitivamente - a questão do ser, trata-se como um problema autônomo à maneira de aparecer das coisas. Há fenomenologia rigorosa no momento em que essa dissociação é refletida por ela mesma qualquer que seja seu destino definitivo; ...26”. “Isto significa que a perspectiva filosófica é um fator essencial à constituição de uma fenomenologia que se quer rigorosa. 27”
Consoante postula esta corrente do pensamento filosófico, o fenômeno é percebido pela consciência cognoscente, diretamente, sem intermediário, o que quer dizer, pela intuição.
A intuição ocorre, pois, quando o objeto do conhecimento pode se nos apresentar de modo imediato, sem intermediário. Origina do latim “Intuere”, e significa ver.
Intuição é uma modalidade de conhecimento que pela sua característica de atingir o objeto sem “meio” ou sem o intermédio das comparações, assemelhando-se ao fenômeno da visão.
A Fenomenologia é uma ciência das essências ou “ciência eidética” e postula ser possível alcançar uma compreensão à priori do ser, isto é, independentemente da experiência efetiva.
“... o discurso filosófico deve sempre permanecer em contato com a intuição se não quiser se dissolver em especulações vazias. Esse retorno incessante à intuição originária”, fonte de direito para o conhecimento”, Husserl o chama de princípio dos princípios: Significações que não fossem vivificadas senão por intuições longínquas e imprecisas, inautênticas - se é que isso acontece através de intuições quaisquer - não poderiam nos satisfazer. Nós queremos voltar às coisas mesmas.28”.
Husserl coloca como exigência fundamental que o teórico saia do “esquecimento de si”, o que significa que, no exercício da Lógica, ele deverá recuperar sua subjetividade, estando presente em seu ato, na condição de sujeito, uma vez que não ocorreria um verdadeiro conhecimento não acontecendo um simultâneo conhecimento de si. Ao mesmo tempo em que a coisa está “diante dos olhos”, a “a mão”, o sujeito também “está aí”, percebendo-se presente.
O papel fundamental da fenomenologia seria, sobretudo elucidar o “puro reino das essências”, correspondendo, em sua origem, a uma filosofia das essências, que podem ser extraídas pela colocação, entre parênteses, de todo dado de fato, quer dizer, de toda posição de existência.
Através da redução fenomenológica, o sujeito sai da atitude ingênua e primária com referência a si próprio e às coisas, constituindo o sentido intrínseco e original da realidade, a qual se dá pela relação essencial com a subjetividade, expressando o seu comprometimento com o mundo, o qual passa a conhecer na totalidade de suas relações.
Para Merleau-Ponty29, “Voltar às coisas mesmas é voltar a esse mundo antes do conhecimento, do qual o conhecimento fala sempre e com relação ao qual toda determinação científica é abstrata, signitiva e dependente, como a geografia com relação à paisagem onde aprendemos pela primeira vez o que é uma floresta, uma campina ou um rio”.
André Dartigues30 diz: Pode parecer surpreendente que o que se chamou na França “existencialismo” se ligue à fenomenologia, já que esta era na origem uma filosofia das essências que se extraiam pela colocação entre parênteses de todo dado de fato, logo, de toda posição de existência. Mas observamos também que esse ponto de partida, que poderia ter conduzido Husserl a uma forma de logicismo ou de platonismo, foi bastante rapidamente corrigido pelo cuidado escrupuloso de “voltar às coisas mesmas”, logo de ligar essas essências à atividade da consciência sem a qual não poderiam ter sido concebidas. A redução fenomenológica havia posto em evidência a intencionalidade da consciência para a qual todo objeto do mundo, real ou ideal, remetia à camada primitiva da vivência. Assim, as essências, longe de construírem um mundo separado, não eram senão a explicitação no “campo da idealidade” desse fato bruto e primordial que é o ser no mundo: ”Longe de ser, como se acreditou, escreve Merleau-Ponty31, a forma de uma filosofia idealista, a redução fenomenológica é a fórmula de uma filosofia existencial; o “In-der-Welt-Sein” de Heidegger só aparece sob o fundo da redução fenomenológica”.
Em razão da complexidade de seu objeto, as ciências humanas estariam a necessitar urgentemente de uma renovação de métodos, mas enquanto adequada à reflexão sobre as atividades e o conhecimento humanos, a fenomenologia concerne à ciência em seu conjunto, de vez que tudo que existe ou acontece é fenômeno, tornando o domínio da fenomenologia praticamente ilimitado, motivo pelo qual não seria possível confiná-la em uma ciência específica.
“A fenomenologia se apresentou desde o seu início como uma tentativa para resolver um problema que não é o de uma seita: ele se colocava desde 1900 a todo o mundo, ele se coloca ainda hoje. O esforço filosófico de Husserl é, com efeito, destinado em seu espírito a resolver simultaneamente uma crise da filosofia, uma crise das ciências do homem e uma crise das ciências pura e simplesmente da qual ainda não saímos. 32”
“Se a fenomenologia foi em seu início antimetafísica, ao abandonar as especulações e as construções filosóficas pela descrição neutra dos fenômenos, ela trazia em si, contudo, as exigências de uma teoria geral do ser, de uma ontologia. Pois Husserl jamais concebeu o fenômeno como separado do ser, nem, portanto, a fenomenologia como um simples fenomenismo, vale dizer, uma simples descrição das aparências, sobre o sentido fundamental sobre as quais não poderíamos nos pronunciar. O ser se dando, ao contrário, no fenômeno, o estudo do fenômeno deve normalmente tornar-se um estudo do ser33”: “A fenomenologia transcendental, sistemática e plenamente desenvolvida, é eo ipso uma autêntica ontologia universal. 34”
O papel da fenomenologia seria, sobretudo elucidar o “puro reino das essências”, correspondendo, em sua origem, a uma filosofia das essências, que eram extraídas pela colocação, entre parênteses, de todo dado de fato, portanto, de toda posição de existência.
”... se o fenômeno não é nada construído, se é acessível a todos, o pensamento racional, o logos, deve sê-lo também e Husserl acaba por conceber uma filosofia nova que realizaria então o sonho de toda a filosofia: tornar-se uma ciência rigorosa35”.
A intencionalidade constitui uma noção central e fundamental da fenomenologia. O princípio da intencionalidade postula que a consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e que ela só é consciência ao estar dirigida para um determinado objeto. Não haverá fenômeno a não ser fenômeno para a consciência. Destarte, o objeto só pode ser definido em relação com a consciência, sendo sempre objeto-para-um-sujeito.
“Se o objeto é sempre objeto-para-uma-consciência, ele não será jamais objeto em si, mas objeto percebido, objeto pensado, rememorado, imaginado etc. A análise intencional vai nos obrigar assim a conceber a relação entre a consciência e o objeto sob uma forma que parecerá estranha ao senso comum. Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza que se trataria em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que lhes é, de alguma maneira, co-original. Se a consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e se o objeto é sempre “objeto para uma consciência” é inconcebível que possamos sair dessa correlação, já que, fora dela não haveria nem consciência nem objeto. Assim se encontra delimitado o campo de análise da fenomenologia: ela deve elucidar a essência dessa correlação na qual não somente aparece tal ou qual objeto, mas se estende ao mundo inteiro. Husserl batizará com o nome de nóese a atividade da consciência e com o nome de nóema, o objeto constituído por essa atividade, entendendo-se que se trata do mesmo campo de análise no qual a consciência aparece como se projetando para fora de si própria em direção o objeto e o objeto como se referindo sempre aos atos da consciência36”: “No sujeito há mais que o sujeito, entendamos mais que o cogito ou nóese; há o objeto mesmo enquanto visado, o cogitatum enquanto é puramente para o sujeito, isto é, constituído por sua referência ao fluxo subjetivo da vivência.37”
Ao restaurar a intencionalidade, como visada de consciência, busca e produção de um sentido, a fenomenologia é capaz de perceber e compreender os fenômenos humanos em seu teor vivido, esboçando uma metodologia de compreensão nas ciências humanas.
A análise intencional conduz à redução fenomenológica ou colocação entre parênteses da realidade tal como a concebe o senso comum, como existindo em si, independentemente de todo ato de consciência e leva à distinção entre sujeito e objeto ou consciência e mundo, expressa, também, como ser-no-mundo, correlacionando-se com a dualidade sujeito-objeto e que se traduz por interior e exterior.
A tarefa real e central da fenomenologia se constitui na análise das vivências intencionais da consciência para perceber como nela é produzido o sentido dos fenômenos, o sentido desse fenômeno global designado mundo.
“Esta (a fenomenologia) não estuda os objetos que o especialista de outras ciências considera, mas o sistema total dos atos possíveis da consciência, das aparições possíveis, das significações que se relacionam precisamente com esses objetos. Toda investigação dogmática referindo-se a objetos exige sua transmutação numa investigação transcendental. 38”
A fenomenologia, pelo seu caráter de subjetividade, é empregada por numerosos pesquisadores como quadro de referência para a captação da realidade social, pois a subjetividade é subjacente aos fenômenos sociais, sendo esta dimensão subjetiva que distingue os fenômenos humanos dos fenômenos naturais.
No Capítulo VII trataremos da Dialética dos Sistemas Vivos, enquanto no VIII, abordaremos a Dialética Cibernética, duas propostas dos autores, com base, não só na própria Dialética, abordando uma série de oposições, sobretudo as que se referem a ao antagonismo entre os sistemas e o ambiente e, entre a Entropia e a Negentropia, mas também, na Biologia e na Ecologia, ao adotar o modelo dos organismos vivos e dos ecossistemas naturais e, na Cibernética, introduzindo o seu dispositivo de retroação (retroalimentação ou “feedback”) no processo dialético.
Entretanto, podemos afirmar que a hipótese de construção de uma Dialética Cibernética pode ser resumida como a fusão Dialética com a Cibernética ou, a justaposição de ambas as ciências.
O sistemismo, um dos principais componentes do alicerce deste trabalho, será abordado com mais detalhes no Capítulo II - Enfoque Sistêmico, quando faremos algumas considerações sobre o Estruturalismo, bem como referência ao seu parentesco com o Sistemismo, ambos integrando os fundamentos do Sistemismo Ecológico Cibernético, abordado no Capítulo X.
O Método Científico com os reajustes (“feedback”) que vem se processando, ao longo do tempo, possibilitou o enorme desenvolvimento científico vigente e assegura os avanços futuros.
Em decorrência de sua evolução, o conhecimento cientifico tornou-se cada vez mais vasto e complexo. Daí surgiu a necessidade de conhecimento especializado, de vez que todo o campo de estudo torna-se, dia a dia, mais complexo.
As especializações e sub-especializações têm óbvias vantagens, entretanto, torna continuamente mais parcializante, reducionista, fragmentária a cultura de cada indivíduo, conduzindo-o a uma percepção casuística e limitativa da realidade e de seus componentes, comprometendo a aquisição de uma visão de conjunto, integrativa, gestáltica, sistêmica, ou seja, holística.
O Método Científico tem evoluído constantemente, mas não o suficiente para descaracterizar o aspecto mecanicista, matemático, analítico, fragmentário, característico da visão cartesiano-newtoniana, ainda predominante, apesar dos processos de globalização, em curso em todos os setores da sociedade.
A abordagem do próprio homem, focalizado como objeto de conhecimento, não constitui exceção. Procura-se conhecer melhor sua dimensão espacial (corporal). Disseca-se, cada vez mais, a sua estrutura anatômica, histológica, química (molecular ou iônica), pesquisa-se a sua fisiologia geral, organísmica, celular, expressas por fenômenos físico-químicos. Investiga-se a origem da vida, a estrutura genética, atingindo-se o seu ápice ao mapear, decifrar o genoma humano, bem como a sua dimensão temporal (historicidade): longevidade, evolução biológica, o processo de hominização, cujo ápice é o surgimento da consciência, a sociogênese, a evolução social, científica e tecnológica, mas todos estes estudos ocorrem, geralmente, de maneira desintegrada, dissociada, reducionista, fragmentária.
Ao reverso, o homem precisa ser visualizado, sobretudo, no que tange à sua dimensão sistêmica, holística, (abrangendo seus aspectos bio-psico-sócio-espirituais) e, como integrante dos metassistemas família, comunidade e sociedade e ainda, como componente do ecossistema, formado pelo o sistema humano + o sistema ambiental, integrando a realidade (conjunto de seres, coisas e eventos), constituindo uma malha, um entrelaçamento, uma teia, uma rede, que integra o Universo dinâmico (em movimento), situado na imensidão do espaço/tempo, tendo, o próprio homem, a capacidade de transformar essa realidade e, reciprocamente, sendo por ela afetado, cuja síntese deste inter-relacionamento é o processo mútuo de transformações o conjunto de trocas contínuas e permanentes de matéria, energia e informações entre cada sistema e o respectivo ecossistema, afetando-se mutuamente, daí da necessidade de uma metodologia capaz de abarcar ambos, ao mesmo tempo, como a contida no Sistemismo Ecológico Cibernético, proposta fundamental deste trabalho e constante do Capítulo X.
A complexidade do saber científico atual, aliado ao incremento e velocidade do desenvolvimento da pesquisa, resultando em uma espantosa produção de conhecimentos, é responsável pelo crescimento, cada vez maior, da necessidade de novas especializações, o que vem conduzindo os especialistas a uma estrutura fragmentária de conhecimentos.
No caso específico do homem, tornou-se possível fragmentá-lo, “desmontá-lo” com facilidade, mas o problema crucial, que se afigura agora, é o da reconstrução ou reintegração de suas partes, da sua “remontagem” e da sua integração com o contexto ambiental, familiar, comunitário e social.
A percepção fragmentária é, sem dúvida, decorrente do paradigma cartesiano/newtoniano, mecanicista e analítico que norteou o desenvolvimento cientifico e tecnológico, inclusive o advento e a evolução, até os dias presentes, das profissões de saúde, entre as quais as de medicina e de enfermagem.
Ao tornar este mundo, cada vez mais complexo, em decorrência da evolução científico-tecnológica e social, surgiram tentativas no sentido de sistematizá-lo e simplificá-lo, não só para facilitar a sua compreensão, mas também para permitir ao homem se situar melhor nele, capacitando-o para se beneficiar de suas condições vantajosas e, ao mesmo tempo, se livrar de suas potencialidades agressivas, ou pelo menos, minimizar seus efeitos.
A par das indiscutíveis vantagens do conhecimento especializado e das especializações, tal situação conduz, não raras vezes, a verdadeiros impasses, como resultante da cultura fragmentária ou reducionista da maioria das pessoas, dificultando a integração das partes constituintes do todo, necessária à compreensão dos sistemas e processos em sua totalidade, com isto, impedindo a aquisição de uma visão sintética, globalística, gestáltica ou holística dos fenômenos em estudo.
Conseqüentemente, "o físico, o biologista, o psicólogo e o cientista social estão, por assim dizer, encapsulados em seus universos privados, sendo difícil conseguir que uma palavra passe de um casulo para distante. 39”. .
Como já mencionamos, o próprio homem tem sido, através dos tempos, estudado de uma maneira parcializante.
Essas mesmas tendências surgiram na Psicologia, aparecendo os problemas de totalidade, interação dinâmica e organização.
Segundo Mário Chaves40, “Von Bertalanffy na década de 1920, teria se insurgido contra a abordagem mecanicista que então prevalecia na teoria da biologia, para advogar uma concepção organísmica, como preconizara Claude Bernard41, capaz de ressaltar o organismo como uma totalidade ou sistema e de focalizar a principal meta das ciências biológicas na descoberta dos princípios de organização, em seus diferentes níveis. Já em 1929 e 1932, surge o trabalho de Cannon42 sobre a homeostasia”.
A concepção mecanicista, então vigente na biologia, se propunha à redução dos fenômenos vitais a entidades atômicas e processos parciais. O organismo se resumia a células, suas atividades a processos fisiológicos e, finalmente, físico-químicos, o comportamento se restringia a reflexos incondicionados e condicionados simplesmente, o substrato da hereditariedade era reduzido a partículas cromossômicas.
Ao reverso, no contexto da concepção organísmica, em que se fundamenta a biologia contemporânea, se faz necessário estudar não apenas partes e processos de per si, mas também equacionar os problemas básicos encontrados na organização e na ordem que os unifica, resultante da interação dinâmica das partes (sistêmica, holística), que torna diverso o comportamento das partes, quando é estudado isoladamente ou quando tratado em sua totalidade e abrangência.
Essas mesmas tendências surgiram na Psicologia, aparecendo os problemas de totalidade, interação dinâmica e organização.
Na psicologia clássica associacionista pretendia-se simplificar os fenômenos mentais a unidades elementares - "átomos psicológicos", como as sensações elementares, enquanto a psicologia gestaltista passou a enfatizar a existência e a primazia das totalidades psicológicas, que não podem ser representadas por uma mera somação de unidades elementares, mas disciplinadas por leis dinâmicas e integrativas.
Na mesma linha de raciocínio poderíamos incluir a classificação zoológica, que era estanque antes do advento da teoria da evolução, que veio estabelecer o ordenamento, relacionamento, o parentesco entre todas as espécies animais.
Nas ciências sociais pretendia-se conceituar a sociedade como uma soma de indivíduos, constituída de "átomos sociais", cuja caracterização é o modelo do Homem Econômico, conceito que se torna obsoleto ante a tendência e a necessidade de se focalizar a sociedade, a economia e a nação como um todo perfeitamente estruturado, ordenado, organizado.
Segundo Warren Waver43, a física clássica teve sucesso em criar a teoria da complexidade desorganizada, mas o problema fundamental da atualidade é o da complexidade organizada. Idéias como a de organização, totalidade, direção, teleologia e diferenciação não são, apenas, apanágio da física convencional, surgindo nas ciências biológicas, sociais e do comportamento, tornando-se indispensáveis para estudo dos organismos sociais.
“Este paralelismo dos princípios cognitivos gerais, em diferentes campos, é ainda mais impressionante quando se considera o fato de que estes desenvolvimentos ocorreram independentemente uns dos outros, na maioria dos casos sem qualquer conhecimento do trabalho e da pesquisa realizados em outros campos. 44"
Entretanto, as distorções apontadas vêm resistindo e sobrevivendo, não obstante os esforços transformadores e revolucionários, decorrentes de uma nova cosmovisão, baseada na física moderna que impôs a revisão da perspectiva cartesiana, analítica, mecanicista, substituindo-a por um novo paradigma fundamentado na física e na biologia do nosso tempo e, em teorias holísticas, compatíveis com o modelo dos sistemas auto-organizadores e auto-reguladores, como os organismos vivos e os ecossistemas naturais, portanto, em coerência com uma visão orgânica, sintética, sistêmica e holística do Universo, da vida, do ser humano, da sociedade e do ambiente.
A necessidade de mudança do paradigma que se originou da física clássica, newtoniana, mecanicista e reducionista, tem suas origens nas revisões ocorridas na própria física (física moderna), impostas pelos conhecimentos expressos, entre outras, pela Teoria da Relatividade (Einstein)45, pelo Principio da Incerteza (Heisenberg)46 e pela Teoria Quântica (Max Planck47 e outros).
Em decorrência destas premissas, Lwidg von Bertalanffy48 introduziu, para servir como instrumento de síntese, de totalidade, universalidade e abrangência, a Teoria Geral dos Sistemas (TGS), da qual trataremos no Capítulo II - Enfoque Sistêmico (Sistemismo) - que constitui uma metodologia dela derivada, um dos alicerces fundamentais da metodologia proposta neste livro.
Estribados nesta teoria e em outros aspectos do conhecimento científico-filosófico-social contemporâneo e, com o objetivo de ampliá-la, elaboramos um referencial - o Pensamento Sistêmico-Ecológico Cibernético (PSEC) ou Sistemismo Ecológico Cibernético, constante do Capítulo X, mediante a justaposição de idéias, conceitos e princípios da referida Teoria Geral dos Sistemas (enfoque sistêmico ou sistemismo) com os da Ecologia, além da adição de aspectos de outros ramos do saber.
. O construto resultante destinava-se, inicialmente, a servir de base filosófica para a Teoria Sistêmico-Ecológica de Enfermagem, de autoria de um de nós (Rosalda Paim49, l974), mas como seus Princípios Gerais foram ampliados gradualmente, tornou-se possível, sem que dela se desprendessem (mantendo a sua estrutura, abrangência e unidade), passassem a constituir, ao mesmo tempo, o Pensamento Sistêmico Ecológico Cibernético (PSEC) ou Sistemismo Ecológico Cibernético, o qual será abordado no Capítulo X.










































CAPITULO I
INTRODUÇÃO À METODOLOGIA CIENTÍFICA

A Metodologia Científica constitui uma disciplina instrumental, um roteiro para a concretização da pesquisa.
Na Grécia antiga methodos significava “caminho para chegar a um fim”.
Portanto, etimologicamente, método quer dizer caminho, direção, rota, orientação para se atingir determinado propósito, alvo, fim, objetivo ou meta. Representa um conjunto de meios ou instrumentos dispostos adequadamente para se atingir um objetivo.
Como ponto de partida, vejamos que o “termo Método tem dois significados fundamentais: 1o. Qualquer pesquisa ou orientação de pesquisa; 2o. Uma técnica particular de pesquisa. No primeiro caso, não se distingue de “investigação” ou “doutrina”. O segundo significado é mais restrito e indica um procedimento de investigação organizado, repetível e auto corrigível, que garanta a obtenção de resultados válidos. Ao primeiro significado referem-se expressões como “Método hegeliano”, “Método dialético”, etc., ou mesmo “Método geométrico”, “Método experimental”, etc. Ao segundo referem-se expressões como “Método silogístico”, “Método residual e, em geral os que designam procedimentos específicos de investigação e verificação.1”
A palavra método pode designar quatro coisas distintas: 1a. lógica ou parte da lógica que estuda os métodos; 2a. lógica transcendental; 3a. o conjunto de procedimentos metodológicos de uma ou de várias ciências e, 4a. a análise filosófica desses procedimentos.
O termo metodologia indica, freqüentemente, um conjunto de procedimentos técnicos de averiguação, verificação ou pesquisa, disponível para uma disciplina específica ou, para grupos de disciplinas.
O método científico representa a maneira como o cientista opera no sentido de elucidar, explicar ou controlar a realidade.
A natureza, bem como a própria realidade inteira - conjunto de seres, coisas, eventos e processos - responde tudo que o pesquisador desejar saber, mas para isso, é necessário que ele saiba interrogá-la e, a melhor receita para atingir tal propósito é a adequada utilização do método científico.
O método científico é de aplicação geral, podendo ser comum a várias ciências, ou melhor, comum a todos os setores do conhecimento científico. O que varia, o que diverge é o objeto de estudo de cada ramo da ciência, exigindo-se adaptações e técnicas específicas.
Entretanto, cada ciência tem seu objeto, seu corpo de conhecimentos, sua teoria, seu discurso característico, seus critérios de verdade e. quase mesmo, um método próprio.
Assim, o método epidemiológico é, na realidade, o método científico, adaptado e aplicado ao estudo da história natural das doenças, isto é, a investigação a respeito do local em que uma moléstia incide, quando acontece, porque ocorre e como evolui, qual a sua natureza, porque atuam e como atuam os agentes patogênicos e os elementos capazes de funcionar como veículos de transmissão e, como se comportam os hospedeiros, envolvendo ainda, todas as relações ecológicas existentes entre agentes patogênicos, transmissores e hospedeiros, ou seja, as interações existentes entre eles no ambiente do qual compartilham.
Método “é o procedimento ou conjunto de procedimentos que servem como instrumento para satisfazer as necessidades da investigação”.
Para Piovesan.2, método é o conjunto de regras da pesquisa científica.
Método é um roteiro sistematizado para orientar o pensamento, investigar a realidade, atuar sobre a mesma ou comunicar o resultado de tais atividades.
“Método é um conjunto de etapas, ordenadamente dispostas, a serem vencidas na investigação da verdade, no estudo de uma ciência ou para alcançar um determinado fim. 3”
Destarte, é também, o conjunto de ações sistematizadas objetivando a produção, a utilização ou a comunicação do conhecimento científico.
Representa, pois, a sistematização em qualquer setor das atividades humanas. Alicerça-se na pesquisa, ou seja, na coleta sistematizada de dados, seguida de sua análise e interpretação.
“Reserva-se a palavra método para significar o traçado das etapas fundamentais da pesquisa, enquanto a palavra técnica significa os diversos procedimentos ou a utilização de diversos recursos peculiares a cada objeto da pesquisa, dentro das diversas etapas do método. Diríamos que a técnica é a instrumentação específica da ação, e que o método é mais geral, mais amplo, menos específico. Por isso, dentro das linhas gerais e estáveis do método, as técnicas variam muito e se alteram e progridem de acordo com o progresso tecnológico.4”
A técnica é, pois, meio auxiliar do método. Consiste em aplicações específicas e, portanto, mais restritas.
O método científico empírico, experimental, foi proposto inicialmente por Francis Bacon5, através da obra designada “Da Proficiência do Saber, Divino e Humano” (1605), depois desenvolvido no Novum Organum, do mesmo autor (l620), em contraposição ao método escolástico, então prevalente, herdado da idade média, quando a igreja católica, através da obra de São Tomás de Aquino (1225-1274), adotara oficialmente o método aristotélico, dominando o ensino e o estudo da natureza, com base em conceitos teológicos sobre Deus e o universo.
Ele atacara o escolasticismo que considerava estéril, propunha o raciocínio indutivo - um sistema que, a partir de fatos específicos observáveis - podem se efetuar amplas generalizações, verificando-as, a cada passo, para detectar possíveis exceções e rejeitar ou rever tais generalizações, com base nessas exceções.
Foi o advento e progresso do método científico que permitiu o avanço da ciência e da tecnologia.
Bacon afirmara, categoricamente, que o método correto de pesquisa científica, isto é, o método indutivo, poderia dar ao homem o domínio da natureza.
“Tentando renovar e reorganizar as ciências, Bacon6 procurou um sistema de metodologia científica inteiramente novo; a necessidade da prova na determinação dos fenômenos fundamentais da natureza era seu pré-requisito filosófico. Seria possível estruturar a base de uma nova filosofia não fundada em Aristóteles ou qualquer outra autoridade da Antigüidade, pelo acúmulo suficiente de observações e fatos.”
O método cientifico indutivo foi desenvolvido, mais tarde, por Galileu7 (1632), o qual aderiu à teoria heliocêntrica de Copérnico.8 O notável físico suíço Friederich Dessauer, comentou a respeito de sua imensa importância e influência na história da ciência: “De todas as conquistas de Galileu, sua maior dádiva a posteridade foi o método indutivo, centro de todas as ciências exatas; aperfeiçoado ainda, nos anos que lhe seguiram, provou constituir-se na chave do ser, abrindo sempre novas estradas, de profundidade cada vez maior. E foi através do método indutivo que o nosso conhecimento do mundo cresceu e se tornou um milhão de vezes maior que o dos antigos.”
Para Galileu, o método experimental se constituiria de dois momentos - a indução e a dedução, que viriam a se transformar, na realidade, em dois métodos, gerando duas correntes antagônicas do pensamento - o empirismo inglês, dos quais são expoentes, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume e o racionalismo de Descartes, Melebranche, Espinoza e Leibniz.
“Coube ao gênio de René Descartes10 (1637), balizar o roteiro para a investigação dos problemas científicos, através do Discurso sobre o Método”.
Antes e, acima de tudo, Descartes foi um matemático, um dos pensadores mais originais do mundo, em seu campo. Criou a geometria analítica, unindo a geometria à álgebra.
Em sua época, a matemática era o principal instrumento para descobrir fatos da natureza.
O método de Descartes é, portanto, matemático e analítico.
O racionalismo cartesiano é sintetizado pela frase “penso, logo existo” e postula que a verdadeira essência do ser humano consiste na razão. A filosofia e o método de Descartes são, pois, racionalistas.
O método de Descartes ou método cartesiano, além de matemático e analítico é, pois, racional.
O termo cartesiano correspondente ao nome de Descartes em latim - Renatus Cartesius.
Descartes concluíra que o método matemático era o instrumento ideal para ser aplicado em todas as esferas do saber e que daria resultados de igual precisão e confiança em metafísica, lógica e ética. Para Descartes tudo aquilo que não se podia traduzir em termos matemáticos era irreal.
Em contraposição ao raciocínio indutivo (que vai do particular ao geral), proposto por Bacon e aperfeiçoado por Galileu, Descartes postulava o primado do método dedutivo (que do geral chega ao particular), o qual permitiria as descobertas através do encadeamento lógico de hipóteses formuladas a partir da atividade primordial da razão.
Como Galileu e Newton11, Descartes via o universo como uma máquina gigantesca, semelhante a um mecanismo de relógio, na qual tudo era previsível e mensurável.
. O método cartesiano, além de matemático, analítico, racionalista e dedutivo é, também, mecanicista.
De acordo com estas premissas, o Universo inteiro poderia ser explicado pelas leis da matemática e da mecânica.
O Discurso sobre o Método, de René Descartes, foi considerado por Butterfield12, autor de “As Origens da Ciência Moderna” como um dos livros realmente importantes da nossa historia intelectual, julgamento corroborado por quase quatro séculos de influência universal e afirma que “a concepção cartesiana de uma ciência universal, única, tão unificada, tão ordenada, tão interligada, talvez tenha sido uma das suas mais notáveis contribuições à revolução científica”.
O positivismo, derivado do “cientificismo racionalista”, baseado na concepção do poder absoluto da razão em conhecer realidade e traduzi-la mediante leis naturais, foi criado pelo pensador francês, Augusto Comte13, reforçando a crença no modelo matemático, físico e mecânico.
Comte pretendeu conhecer e explicar a natureza por meio da observação e da experimentação, procurando as leis que a regem, não se buscando, entretanto, leis gerais além do que fosse permitido pela experimentação e pela dedução ou pelo raciocínio matemático, enquanto tudo que ficasse para além deste domínio seria metafísico e não teria valor.
O positivismo foi também designado organicismo, em virtude de conceber a sociedade como um organismo, constituído de partes integradas e coesas, funcionando harmonicamente, consoante o modelo físico-mecânico, introduzindo, também, a idéia de que uma sociedade é algo mais do que o simples somatório dos indivíduos, em contraste com o reducionismo das idéias, então, vigentes.
Augusto Comte, malgrado a característica reducionista do positivismo, pretendeu alçá-lo em nível de universalidade, perseguindo o ideal de Descartes de unificação da ciência e, buscando construir uma pretensa religião da humanidade.
Entre os filósofos iluministas já se encontravam adeptos da idéia de que toda a matéria, incluindo os processos vitais que, consistindo em movimento dessa matéria, obedeciam às leis naturais e que esses princípios deveriam, também, nortear o conhecimento racional da sociedade, buscando-se as leis naturais da organização social.
Não obstante a filosofia da Ilustração já encerrasse potencial passível de conduzir à descoberta das bases materiais das relações sociais, formulando-se a concepção reducionista de uma sociedade representada pelo somatório de individualidades ou “átomos sociais”, o que consistiu no máximo que seus filósofos puderam atingir e, para o quais o comportamento social seria resultado da estrita manifestação da vontade das consciências individuais.
Embora o positivismo reconhecesse que os princípios reguladores do mundo físico e do mundo social diferiam em sua essência, estendeu este raciocínio até mesmo para o estudo da sociedade, cujo conhecimento designou como “física social”, antes que o próprio Comte cunhasse o termo Sociologia, constituindo-se na primeira corrente do pensamento sociológico e atraindo os primeiros cientistas sociais para o seu método de investigação.
Outras correntes do pensamento sociológico enriqueceram o método científico, possibilitando a adoção de metodologias mais específicas para o estudo da sociedade. Entre estas se destacam o estruturalismo, o funcionalismo, a dialética, a fenomenologia, o sistemismo, além de metodologias alternativas, tais como a pesquisa-ação, a pesquisa participativa e a hermenêutica.
O sistemismo será abordado com mais detalhes no Capítulo II - Enfoque Sistêmico e, no Capítulo X - Sistemismo Ecológico Cibernético, quando serão feitas considerações sobre o parentesco entre o Sistemismo e o Estruturalismo.
Com referência à Dialética, pode-se distinguir quatro significados fundamentais: a) - como método da divisão, b) - como lógica do provável, c) - como lógica e, d) - como síntese dos opostos e, desta última, trataremos, a seguir:
O racionalismo hegeliano postula que a razão ou lógica pura, não só concebe as coisas como lhe dá origem, provocando a ação, não existindo uma linha divisória entre o conhecimento filosófico e sua aplicação para explicação do fato científico e, a vida muda constantemente como resultado de uma luta dialética de idéias opostas, nas quais os contrários resultam numa síntese, somente para engendrar suas próprias contradições.
Embora sem expressar a evolução histórica do termo, a Dialética corresponde ao “processo em que há um adversário a ser combatido ou uma tese a ser refutada e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito, ou então, que é um processo resultante do conflito ou da oposição de dois princípios, dois momentos ou duas atividades quaisquer”.
Para Hegel, a realidade inteira move-se dialeticamente. .Assim, a filosofia hegeliana vê em toda parte tríades de teses, antíteses e sínteses, nas quais a antítese corresponde à negação, ao oposto, ao outro da tese, enquanto a síntese constitui a unidade e, ao mesmo tempo, a certificação de ambas.
Hegel14, ao conceber a realidade, entende haver no mundo uma idéia absoluta capaz de tomar consciência de si mesma. Inicialmente, sob a forma de espírito subjetivo ou individual, depois, mediante a forma de espírito objetivo ou coletivo (na família, no estado). A partir daí, eleva-se para o absoluto. Destarte, os espíritos se dirigem, gradativamente, para a unidade do Espírito ou da idéia absoluta, a qual se dispersa a fim de tomar consciência de si. A realidade verdadeira seria a realidade do pensamento. Para Hegel, “tudo o que é real é racional; o que é racional é real”. O mundo, como as coisas e o eu não seriam nada mais que a exteriorização do Espírito. Nesta realidade há um constante devir que se processa na afirmação, na negação e na negação da negação (tese, antítese e síntese).
É nesta visão que deve ser entendida a Fenomenologia do Espírito, de Hegel: “o auto-reconhecimento do Absoluto como espírito dá lugar a uma série de figuras lógicas e históricas que são os graus que o Espírito deve percorrer para alcançar o reconhecimento e a posse de si mesmo. A tarefa primeira da Filosofia é, por isso, a de voltar àquela série de figuras da história ideal do Espírito; por isso a primeira parte do sistema científico da Filosofia deve ser uma Fenomenologia do Espírito, ou seja, percorrer todas as figuras e cada grau já percorrido pelo Espírito na sua história ideal e na sua cronologia. No processo, cada momento do espírito é superado por um momento mais elevado e mais completo. Isso, porém, não quer dizer que a figura em que o Espírito se apresentava no seu grau inferior fosse falsa, apenas não era adequada. 15”
Na seção de autoconsciência da Fenomenologia do Espírito, Hegel16 inicia a estudar figuras tipicamente históricas, tais como as clássicas passagens dedicadas ao antagonismo patrão escravo (dialética patrão-escravo), demonstrando a recíproca compenetração das categorias de autonomia e dependência. Para Hegel, o escravo depende do patrão tanto quanto este depende do escravo, uma vez que necessita dele. Através da luta entre autonomia e dependência (luta dos contrários), atinge-se como resultado concreto o desenvolvimento do Espírito, isto é, o nascer do sentimento de liberdade.
“Para Hegel17, o processo dialético da realidade, que nós chamamos objetiva, não é mais do que uma manifestação exteriorizada do mundo. Para Marx18, pelo contrário, o mundo material existe independentemente de todo o espírito e é na matéria, enquanto tal que se produzem as teses e antíteses que levam as sínteses provisórias, que por sua vez, marcam as fases da evolução cósmica. A dialética do pensamento é um reflexo da dialética das coisas. Também em Hegel encontravam-se afirmações análogas, mas na filosofia de Hegel as próprias coisas eram apenas o reflexo do pensamento.”
Hegel preconiza o primado da consciência sobre a matéria, enquanto Marx e Engels postulam o contrário - o primado da matéria sobre a consciência.
A inversão da dialética hegeliana é, desta maneira, expressa por Marx e Engels19: “o sistema hegeliano estava de cabeça para baixo; nós o pusemos de pé”.
Na visão marxista da realidade, os processos dialéticos que caracterizam essencialmente a matéria, somente são observáveis no pensamento como reflexo do mundo material. Teríamos, assim, uma estrutura da realidade, com suas leis e, uma superestrutura determinada pela primeira.
As relações econômicas, segundo Marx, têm supremacia sobre todas as outras, tornando-se determinação estrutural e, por sua vez, estas estruturas determinarão as relações políticas.
As relações econômicas que se efetuam entre um sistema social e outro, podem ser sintetizadas como intercâmbios de matéria, energia e informações.
“A Economia, que engloba os esforços do homem no sentido de se apropriar da matéria e explorá-la, constitui a estrutura essencial das relações humanas, e as ideologias não passam de uma superestrutura. Ou seja, as relações humanas que se estabelecem na Economia, quer dizer, no esforço do homem para se apropriar da matéria, constituem a estrutura determinante da vida da humanidade. O trabalho, como matéria prima se transforma em produto e este em mercadoria, objeto de troca por dinheiro, e este por sua vez, em capital. Então, o trabalho humano, o próprio homem torna-se coisificado, e a mercadoria um fetiche. A mercadoria fetichizada aprisiona o trabalho humano e, de uma certa forma, o valor do homem. A mercadoria, no seu valor de troca, aparece como a mesma realidade humana e a torna coisa. Mas o valor de troca é só um aspecto que encobre as coisas e não nos dá a realidade. É preciso que a realidade se revele, se torne fenômeno. 20”
A lógica dialética marxista ao penetrar na consciência do homem constitui método para reinterpretar e transformar o real.
“A lógica dialética nasce pelo fato de que se considera a realidade intimamente contraditória, isto é, uma unidade de ser e não ser juntos (tendo como própria a tese de Hegel, de que “todas as coisas têm a contradição em si mesmas”. Conseqüentemente, considera-se, que sendo a realidade assim feita, somente a dialética, a lógica da contradição, é adequada para entendê-la (enquanto a lógica não contraditória, justamente enquanto exclui a contradição, daria uma imagem falsa da realidade). A natureza é dialética, a sociedade também é dialética; por isso, elas não podem ser conhecidas a não ser através de uma análise dialética.21”
O materialismo marxista, referindo-se ao aspecto racional da realidade, afirmava que o sistema de idéias, então vigentes, não era racional, mas deveria se transformar em um sistema racional.
Luigino Valentini22 expressa: Reconhecemos o valor que cada lógica tem na investigação de aspectos particulares da realidade, porém, a reflexão sobre o vivido não pode ser confiada à racionalidade da lógica positiva das ciências, porque esta objetiva a realidade humana e a reduz a sua totalidade. A lógica pragmatista e a dialética, por si só são inadequadas a colher aspectos do vivido que fogem à sua ótica enquanto elas absolutizam o homem em sua finitude. Não é completamente adequada a lógica conjetural a fazer este tipo de investigação, enquanto, mesmo que seja capacitada a colher parte do real, ela atomiza a realidade humana. As intuições da visão do mundo da teoria da relatividade que valoriza a participação subjetiva do homem no conhecimento científico da realidade em sua globalidade nos encorajam a adotar como método de nosso estudo, a lógica transcendental. Ela procura a subjetividade em suas múltiplas relações, procura o transcendente a partir da condição humana da finitude, isto é, do aqui e agora do homem concreto na busca da realidade pelo compromisso e na necessidade da crença.”
O mesmo autor refere que a “lógica” pela qual se norteia para a leitura do real, assumindo o mesmo ponto de vista de Edmund Husserl23, é a Lógica Transcendental, o qual, ao elucidar a lógica de Platão, considera-a como “o lugar de indagação sobre as exigências essenciais de o verdadeiro saber e da verdadeira ciência”, o que corresponde à possibilidade que o homem tem de abarcar a realidade em toda a sua amplitude. Logo, a lógica seria alcançar um ponto de vista através do qual seria possível atingir o verdadeiro saber e a verdadeira ciência.
Pedro Demo24 considera “a dialética a metodologia mais conveniente para a realidade social, a ponto de a tomarmos como postura metodológica específica para essa realidade no sentido em que não se aplica à realidade natural porque esta é destituída de fenômeno histórico subjetivo... Dizíamos que entre as realidades natural e social há diferença suficiente não estanque. Entretanto, para além das condições objetivas, a realidade social é movida igualmente por condições subjetivas, que não são nem maiores nem menores... Na prática vamos encontrar não só dialéticas diferentes, divergentes, mas até mesmo contraditórias, como em qualquer campo metodológico”.
Este autor argumenta a favor da dialética histórico-estrutural que lhe parece a mais consentânea com a realidade histórica, porque equilibraria a contento o jogo das condições objetivas e subjetivas.
Edmund Husser25, autor de “Lógica Formal e Transcendental”, assim se expressa: “Se Lotze, num ditado que se tornou célebre, declarou que a tarefa mais alta do conhecimento não era medir o curso do mundo, mas compreendê-lo, nós, por nossa vez, devemos nos apropriar deste ditado, mutatis mutandis também para a Lógica, para o reino das formações lógicas, isto é, no sentido de que não podemos ficar satisfeitos com que a Lógica, nos moldes das ciências positivas, confira às teorias objetivas de uma forma metódica e reconduza as formas de uma possível autêntica teoria aos princípios e normas. Nós devemos sair do esquecimento de nós mesmos, característica própria das pessoas teóricas que, jogando-se na operação teórica às coisas, às teorias e métodos, não sabem nada sobre a interioridade de seu operar, isto é, do teórico que vive naquelas coisas teóricas e métodos, mas não tem o seu olhar tematicamente esta mesma vida operante. Somente através de uma clarificação de princípios que desça a profundeza da interioridade, onde atuam o conhecer e a teoria, tornar-se-á compreensível aquilo que é realizado como teoria e como ciência autêntica. Somente de tal forma se faz compreensível o verdadeiro sentido daquele ser que a ciência nas suas teorias tinha intenção de elaborar como verdadeiro ser, verdadeira natureza, verdadeiro mundo espiritual.”
Teceremos, agora, considerações sobre alguns aspectos de uma outra corrente filosófica e metodológica, a Fenomenologia.
Etimologicamente, Fenomenologia é o estudo ou ciência do fenômeno, considerado como tal tudo que aparece.
Foi instaurada por Husserl (1859-1938), na segunda metade do século passado, a partir das análises de Bretano sobre a intencionalidade da consciência, buscando a descrição, a compreensão e a interpretação de fenômenos que se apresentam à percepção. Objetiva modificar a relação do homem com o mundo (o ser no mundo) e melhor extrair seu sentido, constituindo-se numa abordagem que procura valorizar os aspectos subjetivos, além da característica de compreensão das ciências humanas, particularmente no que concerne ao fenômeno humano.
O método fenomenológico surge, em contraposição à objetividade e a matematização do conhecimento, características atinentes ao cientificismo, ao positivismo.
A Fenomenologia representa uma corrente filosófica que corresponde a uma terceira via entre o discurso especulativo da Metafísica e o raciocínio das ciências positivas, ou seja, aquela que, antes de todo raciocínio, nos colocaria no mesmo plano da realidade, isto é, representaria uma volta às “coisas mesmas” ou àquilo que é dado, que aparece na consciência.
A Fenomenologia seria a ciência capaz de preencher o espaço vazio deixado pela filosofia especulativa e pelo próprio positivismo, para o qual o conhecimento objetivo estaria imune às construções subjetivas da metafísica.
“No fundo, a fenomenologia nasceu no momento em que, colocando entre parênteses - provisória ou definitivamente - a questão do ser, trata-se como um problema autônomo à maneira de aparecer das coisas. Há fenomenologia rigorosa no momento em que essa dissociação é refletida por ela mesma qualquer que seja seu destino definitivo; ...26”. “Isto significa que a perspectiva filosófica é um fator essencial à constituição de uma fenomenologia que se quer rigorosa. 27”
Consoante postula esta corrente do pensamento filosófico, o fenômeno é percebido pela consciência cognoscente, diretamente, sem intermediário, o que quer dizer, pela intuição.
A intuição ocorre, pois, quando o objeto do conhecimento pode se nos apresentar de modo imediato, sem intermediário. Origina do latim “Intuere”, e significa ver.
Intuição é uma modalidade de conhecimento que pela sua característica de atingir o objeto sem “meio” ou sem o intermédio das comparações, assemelhando-se ao fenômeno da visão.
A Fenomenologia é uma ciência das essências ou “ciência eidética” e postula ser possível alcançar uma compreensão à priori do ser, isto é, independentemente da experiência efetiva.
“... o discurso filosófico deve sempre permanecer em contato com a intuição se não quiser se dissolver em especulações vazias. Esse retorno incessante à intuição originária”, fonte de direito para o conhecimento”, Husserl o chama de princípio dos princípios: Significações que não fossem vivificadas senão por intuições longínquas e imprecisas, inautênticas - se é que isso acontece através de intuições quaisquer - não poderiam nos satisfazer. Nós queremos voltar às coisas mesmas.28”.
Husserl coloca como exigência fundamental que o teórico saia do “esquecimento de si”, o que significa que, no exercício da Lógica, ele deverá recuperar sua subjetividade, estando presente em seu ato, na condição de sujeito, uma vez que não ocorreria um verdadeiro conhecimento não acontecendo um simultâneo conhecimento de si. Ao mesmo tempo em que a coisa está “diante dos olhos”, a “a mão”, o sujeito também “está aí”, percebendo-se presente.
O papel fundamental da fenomenologia seria, sobretudo elucidar o “puro reino das essências”, correspondendo, em sua origem, a uma filosofia das essências, que podem ser extraídas pela colocação, entre parênteses, de todo dado de fato, quer dizer, de toda posição de existência.
Através da redução fenomenológica, o sujeito sai da atitude ingênua e primária com referência a si próprio e às coisas, constituindo o sentido intrínseco e original da realidade, a qual se dá pela relação essencial com a subjetividade, expressando o seu comprometimento com o mundo, o qual passa a conhecer na totalidade de suas relações.
Para Merleau-Ponty29, “Voltar às coisas mesmas é voltar a esse mundo antes do conhecimento, do qual o conhecimento fala sempre e com relação ao qual toda determinação científica é abstrata, signitiva e dependente, como a geografia com relação à paisagem onde aprendemos pela primeira vez o que é uma floresta, uma campina ou um rio”.
André Dartigues30 diz: Pode parecer surpreendente que o que se chamou na França “existencialismo” se ligue à fenomenologia, já que esta era na origem uma filosofia das essências que se extraiam pela colocação entre parênteses de todo dado de fato, logo, de toda posição de existência. Mas observamos também que esse ponto de partida, que poderia ter conduzido Husserl a uma forma de logicismo ou de platonismo, foi bastante rapidamente corrigido pelo cuidado escrupuloso de “voltar às coisas mesmas”, logo de ligar essas essências à atividade da consciência sem a qual não poderiam ter sido concebidas. A redução fenomenológica havia posto em evidência a intencionalidade da consciência para a qual todo objeto do mundo, real ou ideal, remetia à camada primitiva da vivência. Assim, as essências, longe de construírem um mundo separado, não eram senão a explicitação no “campo da idealidade” desse fato bruto e primordial que é o ser no mundo: ”Longe de ser, como se acreditou, escreve Merleau-Ponty31, a forma de uma filosofia idealista, a redução fenomenológica é a fórmula de uma filosofia existencial; o “In-der-Welt-Sein” de Heidegger só aparece sob o fundo da redução fenomenológica”.
Em razão da complexidade de seu objeto, as ciências humanas estariam a necessitar urgentemente de uma renovação de métodos, mas enquanto adequada à reflexão sobre as atividades e o conhecimento humanos, a fenomenologia concerne à ciência em seu conjunto, de vez que tudo que existe ou acontece é fenômeno, tornando o domínio da fenomenologia praticamente ilimitado, motivo pelo qual não seria possível confiná-la em uma ciência específica.
“A fenomenologia se apresentou desde o seu início como uma tentativa para resolver um problema que não é o de uma seita: ele se colocava desde 1900 a todo o mundo, ele se coloca ainda hoje. O esforço filosófico de Husserl é, com efeito, destinado em seu espírito a resolver simultaneamente uma crise da filosofia, uma crise das ciências do homem e uma crise das ciências pura e simplesmente da qual ainda não saímos. 32”
“Se a fenomenologia foi em seu início antimetafísica, ao abandonar as especulações e as construções filosóficas pela descrição neutra dos fenômenos, ela trazia em si, contudo, as exigências de uma teoria geral do ser, de uma ontologia. Pois Husserl jamais concebeu o fenômeno como separado do ser, nem, portanto, a fenomenologia como um simples fenomenismo, vale dizer, uma simples descrição das aparências, sobre o sentido fundamental sobre as quais não poderíamos nos pronunciar. O ser se dando, ao contrário, no fenômeno, o estudo do fenômeno deve normalmente tornar-se um estudo do ser33”: “A fenomenologia transcendental, sistemática e plenamente desenvolvida, é eo ipso uma autêntica ontologia universal. 34”
O papel da fenomenologia seria, sobretudo elucidar o “puro reino das essências”, correspondendo, em sua origem, a uma filosofia das essências, que eram extraídas pela colocação, entre parênteses, de todo dado de fato, portanto, de toda posição de existência.
”... se o fenômeno não é nada construído, se é acessível a todos, o pensamento racional, o logos, deve sê-lo também e Husserl acaba por conceber uma filosofia nova que realizaria então o sonho de toda a filosofia: tornar-se uma ciência rigorosa35”.
A intencionalidade constitui uma noção central e fundamental da fenomenologia. O princípio da intencionalidade postula que a consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e que ela só é consciência ao estar dirigida para um determinado objeto. Não haverá fenômeno a não ser fenômeno para a consciência. Destarte, o objeto só pode ser definido em relação com a consciência, sendo sempre objeto-para-um-sujeito.
“Se o objeto é sempre objeto-para-uma-consciência, ele não será jamais objeto em si, mas objeto percebido, objeto pensado, rememorado, imaginado etc. A análise intencional vai nos obrigar assim a conceber a relação entre a consciência e o objeto sob uma forma que parecerá estranha ao senso comum. Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza que se trataria em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que lhes é, de alguma maneira, co-original. Se a consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e se o objeto é sempre “objeto para uma consciência” é inconcebível que possamos sair dessa correlação, já que, fora dela não haveria nem consciência nem objeto. Assim se encontra delimitado o campo de análise da fenomenologia: ela deve elucidar a essência dessa correlação na qual não somente aparece tal ou qual objeto, mas se estende ao mundo inteiro. Husserl batizará com o nome de nóese a atividade da consciência e com o nome de nóema, o objeto constituído por essa atividade, entendendo-se que se trata do mesmo campo de análise no qual a consciência aparece como se projetando para fora de si própria em direção o objeto e o objeto como se referindo sempre aos atos da consciência36”: “No sujeito há mais que o sujeito, entendamos mais que o cogito ou nóese; há o objeto mesmo enquanto visado, o cogitatum enquanto é puramente para o sujeito, isto é, constituído por sua referência ao fluxo subjetivo da vivência.37”
Ao restaurar a intencionalidade, como visada de consciência, busca e produção de um sentido, a fenomenologia é capaz de perceber e compreender os fenômenos humanos em seu teor vivido, esboçando uma metodologia de compreensão nas ciências humanas.
A análise intencional conduz à redução fenomenológica ou colocação entre parênteses da realidade tal como a concebe o senso comum, como existindo em si, independentemente de todo ato de consciência e leva à distinção entre sujeito e objeto ou consciência e mundo, expressa, também, como ser-no-mundo, correlacionando-se com a dualidade sujeito-objeto e que se traduz por interior e exterior.
A tarefa real e central da fenomenologia se constitui na análise das vivências intencionais da consciência para perceber como nela é produzido o sentido dos fenômenos, o sentido desse fenômeno global designado mundo.
“Esta (a fenomenologia) não estuda os objetos que o especialista de outras ciências considera, mas o sistema total dos atos possíveis da consciência, das aparições possíveis, das significações que se relacionam precisamente com esses objetos. Toda investigação dogmática referindo-se a objetos exige sua transmutação numa investigação transcendental. 38”
A fenomenologia, pelo seu caráter de subjetividade, é empregada por numerosos pesquisadores como quadro de referência para a captação da realidade social, pois a subjetividade é subjacente aos fenômenos sociais, sendo esta dimensão subjetiva que distingue os fenômenos humanos dos fenômenos naturais.
No Capítulo VII trataremos da Dialética dos Sistemas Vivos, enquanto no VIII, abordaremos a Dialética Cibernética, duas propostas dos autores, com base, não só na própria Dialética, abordando uma série de oposições, sobretudo as que se referem a ao antagonismo entre os sistemas e o ambiente e, entre a Entropia e a Negentropia, mas também, na Biologia e na Ecologia, ao adotar o modelo dos organismos vivos e dos ecossistemas naturais e, na Cibernética, introduzindo o seu dispositivo de retroação (retroalimentação ou “feedback”) no processo dialético.
Entretanto, podemos afirmar que a hipótese de construção de uma Dialética Cibernética pode ser resumida como a fusão Dialética com a Cibernética ou, a justaposição de ambas as ciências.
O sistemismo, um dos principais componentes do alicerce deste trabalho, será abordado com mais detalhes no Capítulo II - Enfoque Sistêmico, quando faremos algumas considerações sobre o Estruturalismo, bem como referência ao seu parentesco com o Sistemismo, ambos integrando os fundamentos do Sistemismo Ecológico Cibernético, abordado no Capítulo X.
O Método Científico com os reajustes (“feedback”) que vem se processando, ao longo do tempo, possibilitou o enorme desenvolvimento científico vigente e assegura os avanços futuros.
Em decorrência de sua evolução, o conhecimento cientifico tornou-se cada vez mais vasto e complexo. Daí surgiu a necessidade de conhecimento especializado, de vez que todo o campo de estudo torna-se, dia a dia, mais complexo.
As especializações e sub-especializações têm óbvias vantagens, entretanto, torna continuamente mais parcializante, reducionista, fragmentária a cultura de cada indivíduo, conduzindo-o a uma percepção casuística e limitativa da realidade e de seus componentes, comprometendo a aquisição de uma visão de conjunto, integrativa, gestáltica, sistêmica, ou seja, holística.
O Método Científico tem evoluído constantemente, mas não o suficiente para descaracterizar o aspecto mecanicista, matemático, analítico, fragmentário, característico da visão cartesiano-newtoniana, ainda predominante, apesar dos processos de globalização, em curso em todos os setores da sociedade.
A abordagem do próprio homem, focalizado como objeto de conhecimento, não constitui exceção. Procura-se conhecer melhor sua dimensão espacial (corporal). Disseca-se, cada vez mais, a sua estrutura anatômica, histológica, química (molecular ou iônica), pesquisa-se a sua fisiologia geral, organísmica, celular, expressas por fenômenos físico-químicos. Investiga-se a origem da vida, a estrutura genética, atingindo-se o seu ápice ao mapear, decifrar o genoma humano, bem como a sua dimensão temporal (historicidade): longevidade, evolução biológica, o processo de hominização, cujo ápice é o surgimento da consciência, a sociogênese, a evolução social, científica e tecnológica, mas todos estes estudos ocorrem, geralmente, de maneira desintegrada, dissociada, reducionista, fragmentária.
Ao reverso, o homem precisa ser visualizado, sobretudo, no que tange à sua dimensão sistêmica, holística, (abrangendo seus aspectos bio-psico-sócio-espirituais) e, como integrante dos metassistemas família, comunidade e sociedade e ainda, como componente do ecossistema, formado pelo o sistema humano + o sistema ambiental, integrando a realidade (conjunto de seres, coisas e eventos), constituindo uma malha, um entrelaçamento, uma teia, uma rede, que integra o Universo dinâmico (em movimento), situado na imensidão do espaço/tempo, tendo, o próprio homem, a capacidade de transformar essa realidade e, reciprocamente, sendo por ela afetado, cuja síntese deste inter-relacionamento é o processo mútuo de transformações o conjunto de trocas contínuas e permanentes de matéria, energia e informações entre cada sistema e o respectivo ecossistema, afetando-se mutuamente, daí da necessidade de uma metodologia capaz de abarcar ambos, ao mesmo tempo, como a contida no Sistemismo Ecológico Cibernético, proposta fundamental deste trabalho e constante do Capítulo X.
A complexidade do saber científico atual, aliado ao incremento e velocidade do desenvolvimento da pesquisa, resultando em uma espantosa produção de conhecimentos, é responsável pelo crescimento, cada vez maior, da necessidade de novas especializações, o que vem conduzindo os especialistas a uma estrutura fragmentária de conhecimentos.
No caso específico do homem, tornou-se possível fragmentá-lo, “desmontá-lo” com facilidade, mas o problema crucial, que se afigura agora, é o da reconstrução ou reintegração de suas partes, da sua “remontagem” e da sua integração com o contexto ambiental, familiar, comunitário e social.
A percepção fragmentária é, sem dúvida, decorrente do paradigma cartesiano/newtoniano, mecanicista e analítico que norteou o desenvolvimento cientifico e tecnológico, inclusive o advento e a evolução, até os dias presentes, das profissões de saúde, entre as quais as de medicina e de enfermagem.
Ao tornar este mundo, cada vez mais complexo, em decorrência da evolução científico-tecnológica e social, surgiram tentativas no sentido de sistematizá-lo e simplificá-lo, não só para facilitar a sua compreensão, mas também para permitir ao homem se situar melhor nele, capacitando-o para se beneficiar de suas condições vantajosas e, ao mesmo tempo, se livrar de suas potencialidades agressivas, ou pelo menos, minimizar seus efeitos.
A par das indiscutíveis vantagens do conhecimento especializado e das especializações, tal situação conduz, não raras vezes, a verdadeiros impasses, como resultante da cultura fragmentária ou reducionista da maioria das pessoas, dificultando a integração das partes constituintes do todo, necessária à compreensão dos sistemas e processos em sua totalidade, com isto, impedindo a aquisição de uma visão sintética, globalística, gestáltica ou holística dos fenômenos em estudo.
Conseqüentemente, "o físico, o biologista, o psicólogo e o cientista social estão, por assim dizer, encapsulados em seus universos privados, sendo difícil conseguir que uma palavra passe de um casulo para distante. 39”. .
Como já mencionamos, o próprio homem tem sido, através dos tempos, estudado de uma maneira parcializante.
Essas mesmas tendências surgiram na Psicologia, aparecendo os problemas de totalidade, interação dinâmica e organização.
Segundo Mário Chaves40, “Von Bertalanffy na década de 1920, teria se insurgido contra a abordagem mecanicista que então prevalecia na teoria da biologia, para advogar uma concepção organísmica, como preconizara Claude Bernard41, capaz de ressaltar o organismo como uma totalidade ou sistema e de focalizar a principal meta das ciências biológicas na descoberta dos princípios de organização, em seus diferentes níveis. Já em 1929 e 1932, surge o trabalho de Cannon42 sobre a homeostasia”.
A concepção mecanicista, então vigente na biologia, se propunha à redução dos fenômenos vitais a entidades atômicas e processos parciais. O organismo se resumia a células, suas atividades a processos fisiológicos e, finalmente, físico-químicos, o comportamento se restringia a reflexos incondicionados e condicionados simplesmente, o substrato da hereditariedade era reduzido a partículas cromossômicas.
Ao reverso, no contexto da concepção organísmica, em que se fundamenta a biologia contemporânea, se faz necessário estudar não apenas partes e processos de per si, mas também equacionar os problemas básicos encontrados na organização e na ordem que os unifica, resultante da interação dinâmica das partes (sistêmica, holística), que torna diverso o comportamento das partes, quando é estudado isoladamente ou quando tratado em sua totalidade e abrangência.
Essas mesmas tendências surgiram na Psicologia, aparecendo os problemas de totalidade, interação dinâmica e organização.
Na psicologia clássica associacionista pretendia-se simplificar os fenômenos mentais a unidades elementares - "átomos psicológicos", como as sensações elementares, enquanto a psicologia gestaltista passou a enfatizar a existência e a primazia das totalidades psicológicas, que não podem ser representadas por uma mera somação de unidades elementares, mas disciplinadas por leis dinâmicas e integrativas.
Na mesma linha de raciocínio poderíamos incluir a classificação zoológica, que era estanque antes do advento da teoria da evolução, que veio estabelecer o ordenamento, relacionamento, o parentesco entre todas as espécies animais.
Nas ciências sociais pretendia-se conceituar a sociedade como uma soma de indivíduos, constituída de "átomos sociais", cuja caracterização é o modelo do Homem Econômico, conceito que se torna obsoleto ante a tendência e a necessidade de se focalizar a sociedade, a economia e a nação como um todo perfeitamente estruturado, ordenado, organizado.
Segundo Warren Waver43, a física clássica teve sucesso em criar a teoria da complexidade desorganizada, mas o problema fundamental da atualidade é o da complexidade organizada. Idéias como a de organização, totalidade, direção, teleologia e diferenciação não são, apenas, apanágio da física convencional, surgindo nas ciências biológicas, sociais e do comportamento, tornando-se indispensáveis para estudo dos organismos sociais.
“Este paralelismo dos princípios cognitivos gerais, em diferentes campos, é ainda mais impressionante quando se considera o fato de que estes desenvolvimentos ocorreram independentemente uns dos outros, na maioria dos casos sem qualquer conhecimento do trabalho e da pesquisa realizados em outros campos. 44"
Entretanto, as distorções apontadas vêm resistindo e sobrevivendo, não obstante os esforços transformadores e revolucionários, decorrentes de uma nova cosmovisão, baseada na física moderna que impôs a revisão da perspectiva cartesiana, analítica, mecanicista, substituindo-a por um novo paradigma fundamentado na física e na biologia do nosso tempo e, em teorias holísticas, compatíveis com o modelo dos sistemas auto-organizadores e auto-reguladores, como os organismos vivos e os ecossistemas naturais, portanto, em coerência com uma visão orgânica, sintética, sistêmica e holística do Universo, da vida, do ser humano, da sociedade e do ambiente.
A necessidade de mudança do paradigma que se originou da física clássica, newtoniana, mecanicista e reducionista, tem suas origens nas revisões ocorridas na própria física (física moderna), impostas pelos conhecimentos expressos, entre outras, pela Teoria da Relatividade (Einstein)45, pelo Principio da Incerteza (Heisenberg)46 e pela Teoria Quântica (Max Planck47 e outros).
Em decorrência destas premissas, Lwidg von Bertalanffy48 introduziu, para servir como instrumento de síntese, de totalidade, universalidade e abrangência, a Teoria Geral dos Sistemas (TGS), da qual trataremos no Capítulo II - Enfoque Sistêmico (Sistemismo) - que constitui uma metodologia dela derivada, um dos alicerces fundamentais da metodologia proposta neste livro.
Estribados nesta teoria e em outros aspectos do conhecimento científico-filosófico-social contemporâneo e, com o objetivo de ampliá-la, elaboramos um referencial - o Pensamento Sistêmico-Ecológico Cibernético (PSEC) ou Sistemismo Ecológico Cibernético, constante do Capítulo X, mediante a justaposição de idéias, conceitos e princípios da referida Teoria Geral dos Sistemas (enfoque sistêmico ou sistemismo) com os da Ecologia, além da adição de aspectos de outros ramos do saber.
. O construto resultante destinava-se, inicialmente, a servir de base filosófica para a Teoria Sistêmico-Ecológica de Enfermagem, de autoria de um de nós (Rosalda Paim49, l974), mas como seus Princípios Gerais foram ampliados gradualmente, tornou-se possível, sem que dela se desprendessem (mantendo a sua estrutura, abrangência e unidade), passassem a constituir, ao mesmo tempo, o Pensamento Sistêmico Ecológico Cibernético (PSEC) ou Sistemismo Ecológico Cibernético, o qual será abordado no Capítulo X.











































CAPITULO I
INTRODUÇÃO À METODOLOGIA CIENTÍFICA

A Metodologia Científica constitui uma disciplina instrumental, um roteiro para a concretização da pesquisa.
Na Grécia antiga methodos significava “caminho para chegar a um fim”.
Portanto, etimologicamente, método quer dizer caminho, direção, rota, orientação para se atingir determinado propósito, alvo, fim, objetivo ou meta. Representa um conjunto de meios ou instrumentos dispostos adequadamente para se atingir um objetivo.
Como ponto de partida, vejamos que o “termo Método tem dois significados fundamentais: 1o. Qualquer pesquisa ou orientação de pesquisa; 2o. Uma técnica particular de pesquisa. No primeiro caso, não se distingue de “investigação” ou “doutrina”. O segundo significado é mais restrito e indica um procedimento de investigação organizado, repetível e auto corrigível, que garanta a obtenção de resultados válidos. Ao primeiro significado referem-se expressões como “Método hegeliano”, “Método dialético”, etc., ou mesmo “Método geométrico”, “Método experimental”, etc. Ao segundo referem-se expressões como “Método silogístico”, “Método residual e, em geral os que designam procedimentos específicos de investigação e verificação.1”
A palavra método pode designar quatro coisas distintas: 1a. lógica ou parte da lógica que estuda os métodos; 2a. lógica transcendental; 3a. o conjunto de procedimentos metodológicos de uma ou de várias ciências e, 4a. a análise filosófica desses procedimentos.
O termo metodologia indica, freqüentemente, um conjunto de procedimentos técnicos de averiguação, verificação ou pesquisa, disponível para uma disciplina específica ou, para grupos de disciplinas.
O método científico representa a maneira como o cientista opera no sentido de elucidar, explicar ou controlar a realidade.
A natureza, bem como a própria realidade inteira - conjunto de seres, coisas, eventos e processos - responde tudo que o pesquisador desejar saber, mas para isso, é necessário que ele saiba interrogá-la e, a melhor receita para atingir tal propósito é a adequada utilização do método científico.
O método científico é de aplicação geral, podendo ser comum a várias ciências, ou melhor, comum a todos os setores do conhecimento científico. O que varia, o que diverge é o objeto de estudo de cada ramo da ciência, exigindo-se adaptações e técnicas específicas.
Entretanto, cada ciência tem seu objeto, seu corpo de conhecimentos, sua teoria, seu discurso característico, seus critérios de verdade e. quase mesmo, um método próprio.
Assim, o método epidemiológico é, na realidade, o método científico, adaptado e aplicado ao estudo da história natural das doenças, isto é, a investigação a respeito do local em que uma moléstia incide, quando acontece, porque ocorre e como evolui, qual a sua natureza, porque atuam e como atuam os agentes patogênicos e os elementos capazes de funcionar como veículos de transmissão e, como se comportam os hospedeiros, envolvendo ainda, todas as relações ecológicas existentes entre agentes patogênicos, transmissores e hospedeiros, ou seja, as interações existentes entre eles no ambiente do qual compartilham.
Método “é o procedimento ou conjunto de procedimentos que servem como instrumento para satisfazer as necessidades da investigação”.
Para Piovesan.2, método é o conjunto de regras da pesquisa científica.
Método é um roteiro sistematizado para orientar o pensamento, investigar a realidade, atuar sobre a mesma ou comunicar o resultado de tais atividades.
“Método é um conjunto de etapas, ordenadamente dispostas, a serem vencidas na investigação da verdade, no estudo de uma ciência ou para alcançar um determinado fim. 3”
Destarte, é também, o conjunto de ações sistematizadas objetivando a produção, a utilização ou a comunicação do conhecimento científico.
Representa, pois, a sistematização em qualquer setor das atividades humanas. Alicerça-se na pesquisa, ou seja, na coleta sistematizada de dados, seguida de sua análise e interpretação.
“Reserva-se a palavra método para significar o traçado das etapas fundamentais da pesquisa, enquanto a palavra técnica significa os diversos procedimentos ou a utilização de diversos recursos peculiares a cada objeto da pesquisa, dentro das diversas etapas do método. Diríamos que a técnica é a instrumentação específica da ação, e que o método é mais geral, mais amplo, menos específico. Por isso, dentro das linhas gerais e estáveis do método, as técnicas variam muito e se alteram e progridem de acordo com o progresso tecnológico.4”
A técnica é, pois, meio auxiliar do método. Consiste em aplicações específicas e, portanto, mais restritas.
O método científico empírico, experimental, foi proposto inicialmente por Francis Bacon5, através da obra designada “Da Proficiência do Saber, Divino e Humano” (1605), depois desenvolvido no Novum Organum, do mesmo autor (l620), em contraposição ao método escolástico, então prevalente, herdado da idade média, quando a igreja católica, através da obra de São Tomás de Aquino (1225-1274), adotara oficialmente o método aristotélico, dominando o ensino e o estudo da natureza, com base em conceitos teológicos sobre Deus e o universo.
Ele atacara o escolasticismo que considerava estéril, propunha o raciocínio indutivo - um sistema que, a partir de fatos específicos observáveis - podem se efetuar amplas generalizações, verificando-as, a cada passo, para detectar possíveis exceções e rejeitar ou rever tais generalizações, com base nessas exceções.
Foi o advento e progresso do método científico que permitiu o avanço da ciência e da tecnologia.
Bacon afirmara, categoricamente, que o método correto de pesquisa científica, isto é, o método indutivo, poderia dar ao homem o domínio da natureza.
“Tentando renovar e reorganizar as ciências, Bacon6 procurou um sistema de metodologia científica inteiramente novo; a necessidade da prova na determinação dos fenômenos fundamentais da natureza era seu pré-requisito filosófico. Seria possível estruturar a base de uma nova filosofia não fundada em Aristóteles ou qualquer outra autoridade da Antigüidade, pelo acúmulo suficiente de observações e fatos.”
O método cientifico indutivo foi desenvolvido, mais tarde, por Galileu7 (1632), o qual aderiu à teoria heliocêntrica de Copérnico.8 O notável físico suíço Friederich Dessauer, comentou a respeito de sua imensa importância e influência na história da ciência: “De todas as conquistas de Galileu, sua maior dádiva a posteridade foi o método indutivo, centro de todas as ciências exatas; aperfeiçoado ainda, nos anos que lhe seguiram, provou constituir-se na chave do ser, abrindo sempre novas estradas, de profundidade cada vez maior. E foi através do método indutivo que o nosso conhecimento do mundo cresceu e se tornou um milhão de vezes maior que o dos antigos.”
Para Galileu, o método experimental se constituiria de dois momentos - a indução e a dedução, que viriam a se transformar, na realidade, em dois métodos, gerando duas correntes antagônicas do pensamento - o empirismo inglês, dos quais são expoentes, Hobbes, Locke, Berkeley e Hume e o racionalismo de Descartes, Melebranche, Espinoza e Leibniz.
“Coube ao gênio de René Descartes10 (1637), balizar o roteiro para a investigação dos problemas científicos, através do Discurso sobre o Método”.
Antes e, acima de tudo, Descartes foi um matemático, um dos pensadores mais originais do mundo, em seu campo. Criou a geometria analítica, unindo a geometria à álgebra.
Em sua época, a matemática era o principal instrumento para descobrir fatos da natureza.
O método de Descartes é, portanto, matemático e analítico.
O racionalismo cartesiano é sintetizado pela frase “penso, logo existo” e postula que a verdadeira essência do ser humano consiste na razão. A filosofia e o método de Descartes são, pois, racionalistas.
O método de Descartes ou método cartesiano, além de matemático e analítico é, pois, racional.
O termo cartesiano correspondente ao nome de Descartes em latim - Renatus Cartesius.
Descartes concluíra que o método matemático era o instrumento ideal para ser aplicado em todas as esferas do saber e que daria resultados de igual precisão e confiança em metafísica, lógica e ética. Para Descartes tudo aquilo que não se podia traduzir em termos matemáticos era irreal.
Em contraposição ao raciocínio indutivo (que vai do particular ao geral), proposto por Bacon e aperfeiçoado por Galileu, Descartes postulava o primado do método dedutivo (que do geral chega ao particular), o qual permitiria as descobertas através do encadeamento lógico de hipóteses formuladas a partir da atividade primordial da razão.
Como Galileu e Newton11, Descartes via o universo como uma máquina gigantesca, semelhante a um mecanismo de relógio, na qual tudo era previsível e mensurável.
. O método cartesiano, além de matemático, analítico, racionalista e dedutivo é, também, mecanicista.
De acordo com estas premissas, o Universo inteiro poderia ser explicado pelas leis da matemática e da mecânica.
O Discurso sobre o Método, de René Descartes, foi considerado por Butterfield12, autor de “As Origens da Ciência Moderna” como um dos livros realmente importantes da nossa historia intelectual, julgamento corroborado por quase quatro séculos de influência universal e afirma que “a concepção cartesiana de uma ciência universal, única, tão unificada, tão ordenada, tão interligada, talvez tenha sido uma das suas mais notáveis contribuições à revolução científica”.
O positivismo, derivado do “cientificismo racionalista”, baseado na concepção do poder absoluto da razão em conhecer realidade e traduzi-la mediante leis naturais, foi criado pelo pensador francês, Augusto Comte13, reforçando a crença no modelo matemático, físico e mecânico.
Comte pretendeu conhecer e explicar a natureza por meio da observação e da experimentação, procurando as leis que a regem, não se buscando, entretanto, leis gerais além do que fosse permitido pela experimentação e pela dedução ou pelo raciocínio matemático, enquanto tudo que ficasse para além deste domínio seria metafísico e não teria valor.
O positivismo foi também designado organicismo, em virtude de conceber a sociedade como um organismo, constituído de partes integradas e coesas, funcionando harmonicamente, consoante o modelo físico-mecânico, introduzindo, também, a idéia de que uma sociedade é algo mais do que o simples somatório dos indivíduos, em contraste com o reducionismo das idéias, então, vigentes.
Augusto Comte, malgrado a característica reducionista do positivismo, pretendeu alçá-lo em nível de universalidade, perseguindo o ideal de Descartes de unificação da ciência e, buscando construir uma pretensa religião da humanidade.
Entre os filósofos iluministas já se encontravam adeptos da idéia de que toda a matéria, incluindo os processos vitais que, consistindo em movimento dessa matéria, obedeciam às leis naturais e que esses princípios deveriam, também, nortear o conhecimento racional da sociedade, buscando-se as leis naturais da organização social.
Não obstante a filosofia da Ilustração já encerrasse potencial passível de conduzir à descoberta das bases materiais das relações sociais, formulando-se a concepção reducionista de uma sociedade representada pelo somatório de individualidades ou “átomos sociais”, o que consistiu no máximo que seus filósofos puderam atingir e, para o quais o comportamento social seria resultado da estrita manifestação da vontade das consciências individuais.
Embora o positivismo reconhecesse que os princípios reguladores do mundo físico e do mundo social diferiam em sua essência, estendeu este raciocínio até mesmo para o estudo da sociedade, cujo conhecimento designou como “física social”, antes que o próprio Comte cunhasse o termo Sociologia, constituindo-se na primeira corrente do pensamento sociológico e atraindo os primeiros cientistas sociais para o seu método de investigação.
Outras correntes do pensamento sociológico enriqueceram o método científico, possibilitando a adoção de metodologias mais específicas para o estudo da sociedade. Entre estas se destacam o estruturalismo, o funcionalismo, a dialética, a fenomenologia, o sistemismo, além de metodologias alternativas, tais como a pesquisa-ação, a pesquisa participativa e a hermenêutica.
O sistemismo será abordado com mais detalhes no Capítulo II - Enfoque Sistêmico e, no Capítulo X - Sistemismo Ecológico Cibernético, quando serão feitas considerações sobre o parentesco entre o Sistemismo e o Estruturalismo.
Com referência à Dialética, pode-se distinguir quatro significados fundamentais: a) - como método da divisão, b) - como lógica do provável, c) - como lógica e, d) - como síntese dos opostos e, desta última, trataremos, a seguir:
O racionalismo hegeliano postula que a razão ou lógica pura, não só concebe as coisas como lhe dá origem, provocando a ação, não existindo uma linha divisória entre o conhecimento filosófico e sua aplicação para explicação do fato científico e, a vida muda constantemente como resultado de uma luta dialética de idéias opostas, nas quais os contrários resultam numa síntese, somente para engendrar suas próprias contradições.
Embora sem expressar a evolução histórica do termo, a Dialética corresponde ao “processo em que há um adversário a ser combatido ou uma tese a ser refutada e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito, ou então, que é um processo resultante do conflito ou da oposição de dois princípios, dois momentos ou duas atividades quaisquer”.
Para Hegel, a realidade inteira move-se dialeticamente. .Assim, a filosofia hegeliana vê em toda parte tríades de teses, antíteses e sínteses, nas quais a antítese corresponde à negação, ao oposto, ao outro da tese, enquanto a síntese constitui a unidade e, ao mesmo tempo, a certificação de ambas.
Hegel14, ao conceber a realidade, entende haver no mundo uma idéia absoluta capaz de tomar consciência de si mesma. Inicialmente, sob a forma de espírito subjetivo ou individual, depois, mediante a forma de espírito objetivo ou coletivo (na família, no estado). A partir daí, eleva-se para o absoluto. Destarte, os espíritos se dirigem, gradativamente, para a unidade do Espírito ou da idéia absoluta, a qual se dispersa a fim de tomar consciência de si. A realidade verdadeira seria a realidade do pensamento. Para Hegel, “tudo o que é real é racional; o que é racional é real”. O mundo, como as coisas e o eu não seriam nada mais que a exteriorização do Espírito. Nesta realidade há um constante devir que se processa na afirmação, na negação e na negação da negação (tese, antítese e síntese).
É nesta visão que deve ser entendida a Fenomenologia do Espírito, de Hegel: “o auto-reconhecimento do Absoluto como espírito dá lugar a uma série de figuras lógicas e históricas que são os graus que o Espírito deve percorrer para alcançar o reconhecimento e a posse de si mesmo. A tarefa primeira da Filosofia é, por isso, a de voltar àquela série de figuras da história ideal do Espírito; por isso a primeira parte do sistema científico da Filosofia deve ser uma Fenomenologia do Espírito, ou seja, percorrer todas as figuras e cada grau já percorrido pelo Espírito na sua história ideal e na sua cronologia. No processo, cada momento do espírito é superado por um momento mais elevado e mais completo. Isso, porém, não quer dizer que a figura em que o Espírito se apresentava no seu grau inferior fosse falsa, apenas não era adequada. 15”
Na seção de autoconsciência da Fenomenologia do Espírito, Hegel16 inicia a estudar figuras tipicamente históricas, tais como as clássicas passagens dedicadas ao antagonismo patrão escravo (dialética patrão-escravo), demonstrando a recíproca compenetração das categorias de autonomia e dependência. Para Hegel, o escravo depende do patrão tanto quanto este depende do escravo, uma vez que necessita dele. Através da luta entre autonomia e dependência (luta dos contrários), atinge-se como resultado concreto o desenvolvimento do Espírito, isto é, o nascer do sentimento de liberdade.
“Para Hegel17, o processo dialético da realidade, que nós chamamos objetiva, não é mais do que uma manifestação exteriorizada do mundo. Para Marx18, pelo contrário, o mundo material existe independentemente de todo o espírito e é na matéria, enquanto tal que se produzem as teses e antíteses que levam as sínteses provisórias, que por sua vez, marcam as fases da evolução cósmica. A dialética do pensamento é um reflexo da dialética das coisas. Também em Hegel encontravam-se afirmações análogas, mas na filosofia de Hegel as próprias coisas eram apenas o reflexo do pensamento.”
Hegel preconiza o primado da consciência sobre a matéria, enquanto Marx e Engels postulam o contrário - o primado da matéria sobre a consciência.
A inversão da dialética hegeliana é, desta maneira, expressa por Marx e Engels19: “o sistema hegeliano estava de cabeça para baixo; nós o pusemos de pé”.
Na visão marxista da realidade, os processos dialéticos que caracterizam essencialmente a matéria, somente são observáveis no pensamento como reflexo do mundo material. Teríamos, assim, uma estrutura da realidade, com suas leis e, uma superestrutura determinada pela primeira.
As relações econômicas, segundo Marx, têm supremacia sobre todas as outras, tornando-se determinação estrutural e, por sua vez, estas estruturas determinarão as relações políticas.
As relações econômicas que se efetuam entre um sistema social e outro, podem ser sintetizadas como intercâmbios de matéria, energia e informações.
“A Economia, que engloba os esforços do homem no sentido de se apropriar da matéria e explorá-la, constitui a estrutura essencial das relações humanas, e as ideologias não passam de uma superestrutura. Ou seja, as relações humanas que se estabelecem na Economia, quer dizer, no esforço do homem para se apropriar da matéria, constituem a estrutura determinante da vida da humanidade. O trabalho, como matéria prima se transforma em produto e este em mercadoria, objeto de troca por dinheiro, e este por sua vez, em capital. Então, o trabalho humano, o próprio homem torna-se coisificado, e a mercadoria um fetiche. A mercadoria fetichizada aprisiona o trabalho humano e, de uma certa forma, o valor do homem. A mercadoria, no seu valor de troca, aparece como a mesma realidade humana e a torna coisa. Mas o valor de troca é só um aspecto que encobre as coisas e não nos dá a realidade. É preciso que a realidade se revele, se torne fenômeno. 20”
A lógica dialética marxista ao penetrar na consciência do homem constitui método para reinterpretar e transformar o real.
“A lógica dialética nasce pelo fato de que se considera a realidade intimamente contraditória, isto é, uma unidade de ser e não ser juntos (tendo como própria a tese de Hegel, de que “todas as coisas têm a contradição em si mesmas”. Conseqüentemente, considera-se, que sendo a realidade assim feita, somente a dialética, a lógica da contradição, é adequada para entendê-la (enquanto a lógica não contraditória, justamente enquanto exclui a contradição, daria uma imagem falsa da realidade). A natureza é dialética, a sociedade também é dialética; por isso, elas não podem ser conhecidas a não ser através de uma análise dialética.21”
O materialismo marxista, referindo-se ao aspecto racional da realidade, afirmava que o sistema de idéias, então vigentes, não era racional, mas deveria se transformar em um sistema racional.
Luigino Valentini22 expressa: Reconhecemos o valor que cada lógica tem na investigação de aspectos particulares da realidade, porém, a reflexão sobre o vivido não pode ser confiada à racionalidade da lógica positiva das ciências, porque esta objetiva a realidade humana e a reduz a sua totalidade. A lógica pragmatista e a dialética, por si só são inadequadas a colher aspectos do vivido que fogem à sua ótica enquanto elas absolutizam o homem em sua finitude. Não é completamente adequada a lógica conjetural a fazer este tipo de investigação, enquanto, mesmo que seja capacitada a colher parte do real, ela atomiza a realidade humana. As intuições da visão do mundo da teoria da relatividade que valoriza a participação subjetiva do homem no conhecimento científico da realidade em sua globalidade nos encorajam a adotar como método de nosso estudo, a lógica transcendental. Ela procura a subjetividade em suas múltiplas relações, procura o transcendente a partir da condição humana da finitude, isto é, do aqui e agora do homem concreto na busca da realidade pelo compromisso e na necessidade da crença.”
O mesmo autor refere que a “lógica” pela qual se norteia para a leitura do real, assumindo o mesmo ponto de vista de Edmund Husserl23, é a Lógica Transcendental, o qual, ao elucidar a lógica de Platão, considera-a como “o lugar de indagação sobre as exigências essenciais de o verdadeiro saber e da verdadeira ciência”, o que corresponde à possibilidade que o homem tem de abarcar a realidade em toda a sua amplitude. Logo, a lógica seria alcançar um ponto de vista através do qual seria possível atingir o verdadeiro saber e a verdadeira ciência.
Pedro Demo24 considera “a dialética a metodologia mais conveniente para a realidade social, a ponto de a tomarmos como postura metodológica específica para essa realidade no sentido em que não se aplica à realidade natural porque esta é destituída de fenômeno histórico subjetivo... Dizíamos que entre as realidades natural e social há diferença suficiente não estanque. Entretanto, para além das condições objetivas, a realidade social é movida igualmente por condições subjetivas, que não são nem maiores nem menores... Na prática vamos encontrar não só dialéticas diferentes, divergentes, mas até mesmo contraditórias, como em qualquer campo metodológico”.
Este autor argumenta a favor da dialética histórico-estrutural que lhe parece a mais consentânea com a realidade histórica, porque equilibraria a contento o jogo das condições objetivas e subjetivas.
Edmund Husser25, autor de “Lógica Formal e Transcendental”, assim se expressa: “Se Lotze, num ditado que se tornou célebre, declarou que a tarefa mais alta do conhecimento não era medir o curso do mundo, mas compreendê-lo, nós, por nossa vez, devemos nos apropriar deste ditado, mutatis mutandis também para a Lógica, para o reino das formações lógicas, isto é, no sentido de que não podemos ficar satisfeitos com que a Lógica, nos moldes das ciências positivas, confira às teorias objetivas de uma forma metódica e reconduza as formas de uma possível autêntica teoria aos princípios e normas. Nós devemos sair do esquecimento de nós mesmos, característica própria das pessoas teóricas que, jogando-se na operação teórica às coisas, às teorias e métodos, não sabem nada sobre a interioridade de seu operar, isto é, do teórico que vive naquelas coisas teóricas e métodos, mas não tem o seu olhar tematicamente esta mesma vida operante. Somente através de uma clarificação de princípios que desça a profundeza da interioridade, onde atuam o conhecer e a teoria, tornar-se-á compreensível aquilo que é realizado como teoria e como ciência autêntica. Somente de tal forma se faz compreensível o verdadeiro sentido daquele ser que a ciência nas suas teorias tinha intenção de elaborar como verdadeiro ser, verdadeira natureza, verdadeiro mundo espiritual.”
Teceremos, agora, considerações sobre alguns aspectos de uma outra corrente filosófica e metodológica, a Fenomenologia.
Etimologicamente, Fenomenologia é o estudo ou ciência do fenômeno, considerado como tal tudo que aparece.
Foi instaurada por Husserl (1859-1938), na segunda metade do século passado, a partir das análises de Bretano sobre a intencionalidade da consciência, buscando a descrição, a compreensão e a interpretação de fenômenos que se apresentam à percepção. Objetiva modificar a relação do homem com o mundo (o ser no mundo) e melhor extrair seu sentido, constituindo-se numa abordagem que procura valorizar os aspectos subjetivos, além da característica de compreensão das ciências humanas, particularmente no que concerne ao fenômeno humano.
O método fenomenológico surge, em contraposição à objetividade e a matematização do conhecimento, características atinentes ao cientificismo, ao positivismo.
A Fenomenologia representa uma corrente filosófica que corresponde a uma terceira via entre o discurso especulativo da Metafísica e o raciocínio das ciências positivas, ou seja, aquela que, antes de todo raciocínio, nos colocaria no mesmo plano da realidade, isto é, representaria uma volta às “coisas mesmas” ou àquilo que é dado, que aparece na consciência.
A Fenomenologia seria a ciência capaz de preencher o espaço vazio deixado pela filosofia especulativa e pelo próprio positivismo, para o qual o conhecimento objetivo estaria imune às construções subjetivas da metafísica.
“No fundo, a fenomenologia nasceu no momento em que, colocando entre parênteses - provisória ou definitivamente - a questão do ser, trata-se como um problema autônomo à maneira de aparecer das coisas. Há fenomenologia rigorosa no momento em que essa dissociação é refletida por ela mesma qualquer que seja seu destino definitivo; ...26”. “Isto significa que a perspectiva filosófica é um fator essencial à constituição de uma fenomenologia que se quer rigorosa. 27”
Consoante postula esta corrente do pensamento filosófico, o fenômeno é percebido pela consciência cognoscente, diretamente, sem intermediário, o que quer dizer, pela intuição.
A intuição ocorre, pois, quando o objeto do conhecimento pode se nos apresentar de modo imediato, sem intermediário. Origina do latim “Intuere”, e significa ver.
Intuição é uma modalidade de conhecimento que pela sua característica de atingir o objeto sem “meio” ou sem o intermédio das comparações, assemelhando-se ao fenômeno da visão.
A Fenomenologia é uma ciência das essências ou “ciência eidética” e postula ser possível alcançar uma compreensão à priori do ser, isto é, independentemente da experiência efetiva.
“... o discurso filosófico deve sempre permanecer em contato com a intuição se não quiser se dissolver em especulações vazias. Esse retorno incessante à intuição originária”, fonte de direito para o conhecimento”, Husserl o chama de princípio dos princípios: Significações que não fossem vivificadas senão por intuições longínquas e imprecisas, inautênticas - se é que isso acontece através de intuições quaisquer - não poderiam nos satisfazer. Nós queremos voltar às coisas mesmas.28”.
Husserl coloca como exigência fundamental que o teórico saia do “esquecimento de si”, o que significa que, no exercício da Lógica, ele deverá recuperar sua subjetividade, estando presente em seu ato, na condição de sujeito, uma vez que não ocorreria um verdadeiro conhecimento não acontecendo um simultâneo conhecimento de si. Ao mesmo tempo em que a coisa está “diante dos olhos”, a “a mão”, o sujeito também “está aí”, percebendo-se presente.
O papel fundamental da fenomenologia seria, sobretudo elucidar o “puro reino das essências”, correspondendo, em sua origem, a uma filosofia das essências, que podem ser extraídas pela colocação, entre parênteses, de todo dado de fato, quer dizer, de toda posição de existência.
Através da redução fenomenológica, o sujeito sai da atitude ingênua e primária com referência a si próprio e às coisas, constituindo o sentido intrínseco e original da realidade, a qual se dá pela relação essencial com a subjetividade, expressando o seu comprometimento com o mundo, o qual passa a conhecer na totalidade de suas relações.
Para Merleau-Ponty29, “Voltar às coisas mesmas é voltar a esse mundo antes do conhecimento, do qual o conhecimento fala sempre e com relação ao qual toda determinação científica é abstrata, signitiva e dependente, como a geografia com relação à paisagem onde aprendemos pela primeira vez o que é uma floresta, uma campina ou um rio”.
André Dartigues30 diz: Pode parecer surpreendente que o que se chamou na França “existencialismo” se ligue à fenomenologia, já que esta era na origem uma filosofia das essências que se extraiam pela colocação entre parênteses de todo dado de fato, logo, de toda posição de existência. Mas observamos também que esse ponto de partida, que poderia ter conduzido Husserl a uma forma de logicismo ou de platonismo, foi bastante rapidamente corrigido pelo cuidado escrupuloso de “voltar às coisas mesmas”, logo de ligar essas essências à atividade da consciência sem a qual não poderiam ter sido concebidas. A redução fenomenológica havia posto em evidência a intencionalidade da consciência para a qual todo objeto do mundo, real ou ideal, remetia à camada primitiva da vivência. Assim, as essências, longe de construírem um mundo separado, não eram senão a explicitação no “campo da idealidade” desse fato bruto e primordial que é o ser no mundo: ”Longe de ser, como se acreditou, escreve Merleau-Ponty31, a forma de uma filosofia idealista, a redução fenomenológica é a fórmula de uma filosofia existencial; o “In-der-Welt-Sein” de Heidegger só aparece sob o fundo da redução fenomenológica”.
Em razão da complexidade de seu objeto, as ciências humanas estariam a necessitar urgentemente de uma renovação de métodos, mas enquanto adequada à reflexão sobre as atividades e o conhecimento humanos, a fenomenologia concerne à ciência em seu conjunto, de vez que tudo que existe ou acontece é fenômeno, tornando o domínio da fenomenologia praticamente ilimitado, motivo pelo qual não seria possível confiná-la em uma ciência específica.
“A fenomenologia se apresentou desde o seu início como uma tentativa para resolver um problema que não é o de uma seita: ele se colocava desde 1900 a todo o mundo, ele se coloca ainda hoje. O esforço filosófico de Husserl é, com efeito, destinado em seu espírito a resolver simultaneamente uma crise da filosofia, uma crise das ciências do homem e uma crise das ciências pura e simplesmente da qual ainda não saímos. 32”
“Se a fenomenologia foi em seu início antimetafísica, ao abandonar as especulações e as construções filosóficas pela descrição neutra dos fenômenos, ela trazia em si, contudo, as exigências de uma teoria geral do ser, de uma ontologia. Pois Husserl jamais concebeu o fenômeno como separado do ser, nem, portanto, a fenomenologia como um simples fenomenismo, vale dizer, uma simples descrição das aparências, sobre o sentido fundamental sobre as quais não poderíamos nos pronunciar. O ser se dando, ao contrário, no fenômeno, o estudo do fenômeno deve normalmente tornar-se um estudo do ser33”: “A fenomenologia transcendental, sistemática e plenamente desenvolvida, é eo ipso uma autêntica ontologia universal. 34”
O papel da fenomenologia seria, sobretudo elucidar o “puro reino das essências”, correspondendo, em sua origem, a uma filosofia das essências, que eram extraídas pela colocação, entre parênteses, de todo dado de fato, portanto, de toda posição de existência.
”... se o fenômeno não é nada construído, se é acessível a todos, o pensamento racional, o logos, deve sê-lo também e Husserl acaba por conceber uma filosofia nova que realizaria então o sonho de toda a filosofia: tornar-se uma ciência rigorosa35”.
A intencionalidade constitui uma noção central e fundamental da fenomenologia. O princípio da intencionalidade postula que a consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e que ela só é consciência ao estar dirigida para um determinado objeto. Não haverá fenômeno a não ser fenômeno para a consciência. Destarte, o objeto só pode ser definido em relação com a consciência, sendo sempre objeto-para-um-sujeito.
“Se o objeto é sempre objeto-para-uma-consciência, ele não será jamais objeto em si, mas objeto percebido, objeto pensado, rememorado, imaginado etc. A análise intencional vai nos obrigar assim a conceber a relação entre a consciência e o objeto sob uma forma que parecerá estranha ao senso comum. Consciência e objeto não são, com efeito, duas entidades separadas na natureza que se trataria em seguida, de pôr em relação, mas consciência e objeto se definem respectivamente a partir desta correlação que lhes é, de alguma maneira, co-original. Se a consciência é sempre “consciência de alguma coisa” e se o objeto é sempre “objeto para uma consciência” é inconcebível que possamos sair dessa correlação, já que, fora dela não haveria nem consciência nem objeto. Assim se encontra delimitado o campo de análise da fenomenologia: ela deve elucidar a essência dessa correlação na qual não somente aparece tal ou qual objeto, mas se estende ao mundo inteiro. Husserl batizará com o nome de nóese a atividade da consciência e com o nome de nóema, o objeto constituído por essa atividade, entendendo-se que se trata do mesmo campo de análise no qual a consciência aparece como se projetando para fora de si própria em direção o objeto e o objeto como se referindo sempre aos atos da consciência36”: “No sujeito há mais que o sujeito, entendamos mais que o cogito ou nóese; há o objeto mesmo enquanto visado, o cogitatum enquanto é puramente para o sujeito, isto é, constituído por sua referência ao fluxo subjetivo da vivência.37”
Ao restaurar a intencionalidade, como visada de consciência, busca e produção de um sentido, a fenomenologia é capaz de perceber e compreender os fenômenos humanos em seu teor vivido, esboçando uma metodologia de compreensão nas ciências humanas.
A análise intencional conduz à redução fenomenológica ou colocação entre parênteses da realidade tal como a concebe o senso comum, como existindo em si, independentemente de todo ato de consciência e leva à distinção entre sujeito e objeto ou consciência e mundo, expressa, também, como ser-no-mundo, correlacionando-se com a dualidade sujeito-objeto e que se traduz por interior e exterior.
A tarefa real e central da fenomenologia se constitui na análise das vivências intencionais da consciência para perceber como nela é produzido o sentido dos fenômenos, o sentido desse fenômeno global designado mundo.
“Esta (a fenomenologia) não estuda os objetos que o especialista de outras ciências considera, mas o sistema total dos atos possíveis da consciência, das aparições possíveis, das significações que se relacionam precisamente com esses objetos. Toda investigação dogmática referindo-se a objetos exige sua transmutação numa investigação transcendental. 38”
A fenomenologia, pelo seu caráter de subjetividade, é empregada por numerosos pesquisadores como quadro de referência para a captação da realidade social, pois a subjetividade é subjacente aos fenômenos sociais, sendo esta dimensão subjetiva que distingue os fenômenos humanos dos fenômenos naturais.
No Capítulo VII trataremos da Dialética dos Sistemas Vivos, enquanto no VIII, abordaremos a Dialética Cibernética, duas propostas dos autores, com base, não só na própria Dialética, abordando uma série de oposições, sobretudo as que se referem a ao antagonismo entre os sistemas e o ambiente e, entre a Entropia e a Negentropia, mas também, na Biologia e na Ecologia, ao adotar o modelo dos organismos vivos e dos ecossistemas naturais e, na Cibernética, introduzindo o seu dispositivo de retroação (retroalimentação ou “feedback”) no processo dialético.
Entretanto, podemos afirmar que a hipótese de construção de uma Dialética Cibernética pode ser resumida como a fusão Dialética com a Cibernética ou, a justaposição de ambas as ciências.
O sistemismo, um dos principais componentes do alicerce deste trabalho, será abordado com mais detalhes no Capítulo II - Enfoque Sistêmico, quando faremos algumas considerações sobre o Estruturalismo, bem como referência ao seu parentesco com o Sistemismo, ambos integrando os fundamentos do Sistemismo Ecológico Cibernético, abordado no Capítulo X.
O Método Científico com os reajustes (“feedback”) que vem se processando, ao longo do tempo, possibilitou o enorme desenvolvimento científico vigente e assegura os avanços futuros.
Em decorrência de sua evolução, o conhecimento cientifico tornou-se cada vez mais vasto e complexo. Daí surgiu a necessidade de conhecimento especializado, de vez que todo o campo de estudo torna-se, dia a dia, mais complexo.
As especializações e sub-especializações têm óbvias vantagens, entretanto, torna continuamente mais parcializante, reducionista, fragmentária a cultura de cada indivíduo, conduzindo-o a uma percepção casuística e limitativa da realidade e de seus componentes, comprometendo a aquisição de uma visão de conjunto, integrativa, gestáltica, sistêmica, ou seja, holística.
O Método Científico tem evoluído constantemente, mas não o suficiente para descaracterizar o aspecto mecanicista, matemático, analítico, fragmentário, característico da visão cartesiano-newtoniana, ainda predominante, apesar dos processos de globalização, em curso em todos os setores da sociedade.
A abordagem do próprio homem, focalizado como objeto de conhecimento, não constitui exceção. Procura-se conhecer melhor sua dimensão espacial (corporal). Disseca-se, cada vez mais, a sua estrutura anatômica, histológica, química (molecular ou iônica), pesquisa-se a sua fisiologia geral, organísmica, celular, expressas por fenômenos físico-químicos. Investiga-se a origem da vida, a estrutura genética, atingindo-se o seu ápice ao mapear, decifrar o genoma humano, bem como a sua dimensão temporal (historicidade): longevidade, evolução biológica, o processo de hominização, cujo ápice é o surgimento da consciência, a sociogênese, a evolução social, científica e tecnológica, mas todos estes estudos ocorrem, geralmente, de maneira desintegrada, dissociada, reducionista, fragmentária.
Ao reverso, o homem precisa ser visualizado, sobretudo, no que tange à sua dimensão sistêmica, holística, (abrangendo seus aspectos bio-psico-sócio-espirituais) e, como integrante dos metassistemas família, comunidade e sociedade e ainda, como componente do ecossistema, formado pelo o sistema humano + o sistema ambiental, integrando a realidade (conjunto de seres, coisas e eventos), constituindo uma malha, um entrelaçamento, uma teia, uma rede, que integra o Universo dinâmico (em movimento), situado na imensidão do espaço/tempo, tendo, o próprio homem, a capacidade de transformar essa realidade e, reciprocamente, sendo por ela afetado, cuja síntese deste inter-relacionamento é o processo mútuo de transformações o conjunto de trocas contínuas e permanentes de matéria, energia e informações entre cada sistema e o respectivo ecossistema, afetando-se mutuamente, daí da necessidade de uma metodologia capaz de abarcar ambos, ao mesmo tempo, como a contida no Sistemismo Ecológico Cibernético, proposta fundamental deste trabalho e constante do Capítulo X.
A complexidade do saber científico atual, aliado ao incremento e velocidade do desenvolvimento da pesquisa, resultando em uma espantosa produção de conhecimentos, é responsável pelo crescimento, cada vez maior, da necessidade de novas especializações, o que vem conduzindo os especialistas a uma estrutura fragmentária de conhecimentos.
No caso específico do homem, tornou-se possível fragmentá-lo, “desmontá-lo” com facilidade, mas o problema crucial, que se afigura agora, é o da reconstrução ou reintegração de suas partes, da sua “remontagem” e da sua integração com o contexto ambiental, familiar, comunitário e social.
A percepção fragmentária é, sem dúvida, decorrente do paradigma cartesiano/newtoniano, mecanicista e analítico que norteou o desenvolvimento cientifico e tecnológico, inclusive o advento e a evolução, até os dias presentes, das profissões de saúde, entre as quais as de medicina e de enfermagem.
Ao tornar este mundo, cada vez mais complexo, em decorrência da evolução científico-tecnológica e social, surgiram tentativas no sentido de sistematizá-lo e simplificá-lo, não só para facilitar a sua compreensão, mas também para permitir ao homem se situar melhor nele, capacitando-o para se beneficiar de suas condições vantajosas e, ao mesmo tempo, se livrar de suas potencialidades agressivas, ou pelo menos, minimizar seus efeitos.
A par das indiscutíveis vantagens do conhecimento especializado e das especializações, tal situação conduz, não raras vezes, a verdadeiros impasses, como resultante da cultura fragmentária ou reducionista da maioria das pessoas, dificultando a integração das partes constituintes do todo, necessária à compreensão dos sistemas e processos em sua totalidade, com isto, impedindo a aquisição de uma visão sintética, globalística, gestáltica ou holística dos fenômenos em estudo.
Conseqüentemente, "o físico, o biologista, o psicólogo e o cientista social estão, por assim dizer, encapsulados em seus universos privados, sendo difícil conseguir que uma palavra passe de um casulo para distante. 39”. .
Como já mencionamos, o próprio homem tem sido, através dos tempos, estudado de uma maneira parcializante.
Essas mesmas tendências surgiram na Psicologia, aparecendo os problemas de totalidade, interação dinâmica e organização.
Segundo Mário Chaves40, “Von Bertalanffy na década de 1920, teria se insurgido contra a abordagem mecanicista que então prevalecia na teoria da biologia, para advogar uma concepção organísmica, como preconizara Claude Bernard41, capaz de ressaltar o organismo como uma totalidade ou sistema e de focalizar a principal meta das ciências biológicas na descoberta dos princípios de organização, em seus diferentes níveis. Já em 1929 e 1932, surge o trabalho de Cannon42 sobre a homeostasia”.
A concepção mecanicista, então vigente na biologia, se propunha à redução dos fenômenos vitais a entidades atômicas e processos parciais. O organismo se resumia a células, suas atividades a processos fisiológicos e, finalmente, físico-químicos, o comportamento se restringia a reflexos incondicionados e condicionados simplesmente, o substrato da hereditariedade era reduzido a partículas cromossômicas.
Ao reverso, no contexto da concepção organísmica, em que se fundamenta a biologia contemporânea, se faz necessário estudar não apenas partes e processos de per si, mas também equacionar os problemas básicos encontrados na organização e na ordem que os unifica, resultante da interação dinâmica das partes (sistêmica, holística), que torna diverso o comportamento das partes, quando é estudado isoladamente ou quando tratado em sua totalidade e abrangência.
Essas mesmas tendências surgiram na Psicologia, aparecendo os problemas de totalidade, interação dinâmica e organização.
Na psicologia clássica associacionista pretendia-se simplificar os fenômenos mentais a unidades elementares - "átomos psicológicos", como as sensações elementares, enquanto a psicologia gestaltista passou a enfatizar a existência e a primazia das totalidades psicológicas, que não podem ser representadas por uma mera somação de unidades elementares, mas disciplinadas por leis dinâmicas e integrativas.
Na mesma linha de raciocínio poderíamos incluir a classificação zoológica, que era estanque antes do advento da teoria da evolução, que veio estabelecer o ordenamento, relacionamento, o parentesco entre todas as espécies animais.
Nas ciências sociais pretendia-se conceituar a sociedade como uma soma de indivíduos, constituída de "átomos sociais", cuja caracterização é o modelo do Homem Econômico, conceito que se torna obsoleto ante a tendência e a necessidade de se focalizar a sociedade, a economia e a nação como um todo perfeitamente estruturado, ordenado, organizado.
Segundo Warren Waver43, a física clássica teve sucesso em criar a teoria da complexidade desorganizada, mas o problema fundamental da atualidade é o da complexidade organizada. Idéias como a de organização, totalidade, direção, teleologia e diferenciação não são, apenas, apanágio da física convencional, surgindo nas ciências biológicas, sociais e do comportamento, tornando-se indispensáveis para estudo dos organismos sociais.
“Este paralelismo dos princípios cognitivos gerais, em diferentes campos, é ainda mais impressionante quando se considera o fato de que estes desenvolvimentos ocorreram independentemente uns dos outros, na maioria dos casos sem qualquer conhecimento do trabalho e da pesquisa realizados em outros campos. 44"
Entretanto, as distorções apontadas vêm resistindo e sobrevivendo, não obstante os esforços transformadores e revolucionários, decorrentes de uma nova cosmovisão, baseada na física moderna que impôs a revisão da perspectiva cartesiana, analítica, mecanicista, substituindo-a por um novo paradigma fundamentado na física e na biologia do nosso tempo e, em teorias holísticas, compatíveis com o modelo dos sistemas auto-organizadores e auto-reguladores, como os organismos vivos e os ecossistemas naturais, portanto, em coerência com uma visão orgânica, sintética, sistêmica e holística do Universo, da vida, do ser humano, da sociedade e do ambiente.
A necessidade de mudança do paradigma que se originou da física clássica, newtoniana, mecanicista e reducionista, tem suas origens nas revisões ocorridas na própria física (física moderna), impostas pelos conhecimentos expressos, entre outras, pela Teoria da Relatividade (Einstein)45, pelo Principio da Incerteza (Heisenberg)46 e pela Teoria Quântica (Max Planck47 e outros).
Em decorrência destas premissas, Lwidg von Bertalanffy48 introduziu, para servir como instrumento de síntese, de totalidade, universalidade e abrangência, a Teoria Geral dos Sistemas (TGS), da qual trataremos no Capítulo II - Enfoque Sistêmico (Sistemismo) - que constitui uma metodologia dela derivada, um dos alicerces fundamentais da metodologia proposta neste livro.
Estribados nesta teoria e em outros aspectos do conhecimento científico-filosófico-social contemporâneo e, com o objetivo de ampliá-la, elaboramos um referencial - o Pensamento Sistêmico-Ecológico Cibernético (PSEC) ou Sistemismo Ecológico Cibernético, constante do Capítulo X, mediante a justaposição de idéias, conceitos e princípios da referida Teoria Geral dos Sistemas (enfoque sistêmico ou sistemismo) com os da Ecologia, além da adição de aspectos de outros ramos do saber.
. O construto resultante destinava-se, inicialmente, a servir de base filosófica para a Teoria Sistêmico-Ecológica de Enfermagem, de autoria de um de nós (Rosalda Paim49, l974), mas como seus Princípios Gerais foram ampliados gradualmente, tornou-se possível, sem que dela se desprendessem (mantendo a sua estrutura, abrangência e unidade), passassem a constituir, ao mesmo tempo, o Pensamento Sistêmico Ecológico Cibernético (PSEC) ou Sistemismo Ecológico Cibernético, o qual será abordado no Capítulo X.